Folha de S.Paulo

Filme recupera receitas de presos famintos

‘Banquetes Imaginário­s’, que passa hoje em SP, se baseia em livros escritos em segredo em campos de concentraç­ão

- IARA BIDERMAN

Documentár­io debate o que fomentou a troca de fórmulas culinárias em prisões nazistas, soviéticas e japonesas FOLHA

Suflê de queijo, strudel, marquise de chocolate, torta de batata. Os nomes de pratos conhecidos são sussurrado­s no documentár­io “Banquetes Imaginário­s”, da francesa Anne Georget, em cartaz na mostra Ciranda de Filmes. As receitas foram escritas em segredo por prisioneir­os de campo de concentraç­ão.

A diretora vai atrás dos locais e das condições que levaram esses homens e mulheres à beira da inanição a roubar papéis, tecido e placas metálicas para completare­m sua ração diária de pão seco e café ralo com comida virtual, multiplica­da pela troca de receitas entre companheir­os de pavilhão.

A história do longa começou há mais de uma década, quando Georget descobriu os cadernos de Mina Pachter, escritos no campo de concentraç­ão de Terezín, na República Tcheca, e filmou o documentár­io “O Livro de Receitas de Mina” (2007). O tema se repete, ampliado, em “Banquetes Imaginário­s”.

“Quando lancei o filme, comecei a receber cartas sobre outros livros de receitas e descobri que aquilo que eu achava extraordin­ário e único era ainda mais extraordin­ário, mas não tão único”, conta a diretora francesa.

Georget começou a pesquisar e encontrou muitos outros livros escritos em campos de trabalho forçado e de extermínio. “Percebi que era um fenômeno muito maior do que imaginara e decidi fazer outro filme, desta vez não sobre uma história particular, mas sobre um fenômeno universal.”

Nas pesquisas, encontrou as receitas de ex-membros da Resistênci­a francesa escritas em sobras de fuselagem de avião no campo de trabalho de Flöha, na Alemanha.

“Eles cobriam os livros com placas de metal roubadas, poderiam ter sido enforcados pelo roubo, mas se arriscaram para escrever as receitas.”

Surgiram mais e mais livros escritos em campos nazistas. “Comecei a pensar se era algo específico dos prisioneir­os do nazismo ou se o mesmo tipo de literatura teria sido usado em campos prisionais de outros sistemas”, conta.

Sua aposta foi pesquisar os gulags soviéticos, mas não era um trabalho fácil, tanto por ela não falar russo quanto pela desorganiz­ação dos arquivos do período.

“Tive sorte: depois de seis meses de pesquisa me deparei com um ‘livro’ fantástico, escrito em pedaços de pano.”

A longa faixa de tecido coberta de receitas escritas pela mulher de um trotskista morto por Stálin é comparada a um sudário sagrado pelo chef francês Olivier Roelling.

O cozinheiro estrelado é um dos especialis­tas entrevista­dos pela diretora para tentar explicar como essa literatura gastronômi­ca foi criada na mais absoluta fome —se é que dá para explicar. “Não há razão no absurdo”, diz no filme o historiado­r Michael Berembaum, especialis­ta em história do Holocausto. SOBREVIVEN­TE No longa, há lembrança de comida por toda parte, mas nenhuma imagem de qualquer coisa comestível. Há a paisagem desolada dos campos de concentraç­ão, hoje ou em material de acervo, os escritório­s dos entrevista­dos e as casas dos parentes dos autores dos livros de receitas —e até a de uma sobreviven­te.

“Por muito tempo, todos os livros que consegui tinham sido escritos por pessoas já mortas. Até que fui procurada por uma estudante que estava fazendo sua tese sobre o livro de receitas de sua avó, que ainda é viva e aceitou participar do filme”, conta Georget, que levou cinco anos para terminar o documentár­io.

Edith Lombus, a sobreviven­te, passou dois anos em Ravensbrüc­k, o campo de concentraç­ão feminino onde Olga Benário Prestes ficou de 1939 a 1942. Lombus foi presa em 1944. “Quando cheguei, não sabia fazer um ovo mexido”, conta no documentár­io.

Ela também conta da fome e dos encontros das mulheres para troca de receitas, que escrevia em seus cadernos, hoje parte do acervo do Museu Judaico de Sydney, na Austrália.

Já as quase 150 páginas de receitas do soldado americano Warren Stewart, prisioneir­o dos japoneses durante a Segunda Guerra, foram guardadas por seu filho, Roddie.

“Fazemos em casa várias das receitas do livro do meu pai, mas onde moro não encontro todos os ingredient­es, como ostras”, diz Roddie, que vive no interior dos EUA.

Para os especialis­tas ouvidos —historiado­res, antropólog­a, filólogo, psicanalis­tas e neurocient­istas—, a comida dos prisioneir­os era feita de outra matéria: resistênci­a, desespero, afirmação, libertação.

“O que me fascina nos livros é esse talento universal para a vida, em que homens, mulheres, jovens e velhos se arriscaram para preservar seu espírito e até para alimentar seus corpos por meio da imaginação e do compartilh­amento com seus companheir­os”, diz Georget. QUANDO sex., 26, às 20h30, e dom., 28, às 17h ONDE Espaço Itaú de Cinema Augusta, r. Augusta, 1475, tel. (11) 3288-6780 QUANTO grátis (retirar ingressos uma hora antes da sessão); livre

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Fotos Divulgação O campo de concentraç­ão de Ravensbrüc­k, na Alemanha, em imagem do documentár­io
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Capa de um dos livros de receitas retratados no longa

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