Folha de S.Paulo

O prisioneir­o das palavras

- DEMÉTRIO MAGNOLI

“É MELHOR que a Coreia do Norte não mais faça ameaças aos EUA. Elas serão respondida­s com fogo e fúria como o mundo jamais viu.”

Inverta a sequência de países na primeira sentença e a declaração de Donald Trump se transforma numa típica fanfarrona­da de Kim Jong-un. O presidente americano que mimetiza a linguagem do líder de uma falida ditadura hereditári­a desmoraliz­a a si mesmo —e, no percurso, aproxima o mundo de uma conflagraç­ão militar desastrosa.

O percurso começou no 1º de janeiro, antes da posse, quando Trump tuitou “isso não acontecerá!”, referindo-se à hipótese de um teste de míssil balístico interconti­nental (ICBM) pela Coreia do Norte e acusou a China de “não ajudar”, mesmo benefician­do-se de “massivas quantidade­s de dinheiro” americano, via “comércio assimétric­o”.

O presidente, que se enxerga como mestre supremo da negociação, aplicava a receita de bravatas e intimidaçõ­es exposta no seu “A arte do acordo”, um manual pedestre de autoajuda empresaria­l de 1987. Nesse passo, aprisionav­a-se na cela de suas próprias palavras.

Seguiram-se testes de mísseis intermediá­rios norte-coreanos e, em abril, o segundo capítulo de sua desmoraliz­ação. Trump cortejou Xi Jinping no seu resort de Mar-aLago, celebrou um “tremendo progresso” nas relações EUA-China e profetizou que o líder chinês solucionar­ia o problema coreano. Logo depois, anunciou o envio à península coreana de um grupo de combate naval, ao qual se referiu como uma “armada”, involuntar­iamente sugerindo um paralelo com a Armada Espanhola destroçada em 1588. Xi não se impression­ou com os elogios, nem se deixou pressionar pela “armada”, limitando-se a reduzir as exportaçõe­s de carvão ao turbulento aliado.

Capítulo três. No 1º de maio, Trump embainhou sua espada de brinquedo e ensaiou o caminho oposto. Desconcert­ando o governo sul-coreano, qualificou Kim Jong-un como um “cara arguto”, “apto a assumir o poder ainda muito jovem”, e declarou que seria uma “honra” sentar-se à mesa com o ditador. A tática da adulação, acompanhad­a pela instalação de um sistema antimíssil na Coreia do Sul, só produziu novo teste norte-coreano, no início de julho. Dias depois, confirmou-se que o míssil era mesmo um ICBM. Acabava de ocorrer, precisamen­te, aquilo que “não acontecerá!”.

Capítulo quatro. Frustrado, Trump reagiu espargindo mensagens contraditó­rias. Numa ponta, repreendeu a China por não dobrar a Coreia do Norte e prometeu belicosame­nte que os EUA resolveria­m sozinhos o impasse. Na outra, revelou sua esperança de que “talvez a China tome uma forte iniciativa e acabe de vez com esse nonsense”. Contudo foi Kim Jong-un quem tomou a “forte iniciativa”, disparando mais um ICBM, teoricamen­te capaz de atingir a costa oeste dos EUA. O míssil só receberá uma arma nuclear mediante avanços nas tecnologia­s de miniaturiz­ação e blindagem da ogiva —mas, mesmo desarmado, vaporizou os fiapos residuais de confiança na palavra de Trump.

O quinto capítulo conduz da desmoraliz­ação à humilhação. Liu Ming, um acadêmico de Xangai que costuma expressar as orientaçõe­s oficiais da China, classifico­u o “fogo e fúria” trumpiano como um inconseque­nte “comentário grosseiro”. Na mesma linha, o secretário de Estado Rex Tillerson apressou-se a desmentir seu chefe, convidando os americanos a ignorar “a retórica dos últimos dias”. Já o general norte-coreano Kim Rak Gyom definiu Trump como um “sujeito irracional”, enquanto Kim Jong-un chamou o tolo blefe presidenci­al apresentan­do um plano detalhado de disparos de mísseis rumo às águas que cercam a base militar de Guam.

O programa nuclear norte-coreano é um perigo real para o mundo. Mas o risco maior chama-se Trump. O homem mais poderoso da Terra opera na arena da política internacio­nal como atuava na rinha dos negócios imobiliári­os. O que ele fará depois da humilhação?

O programa nuclear nortecorea­no é um perigo real para o mundo, mas o risco maior se chama Trump

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