Folha de S.Paulo

LEO SECRETO

No rastro do lançamento do catálogo que lista obra completa de Leonilson, reportagem revela trechos do diário do artista mantido em segredo há 20 anos

- SILAS MARTÍ SÁBADO, 12 DE AGOSTO DE 2017

É deliciosa essa sensação de ficar voando por cima do Atlântico. Há um mês, eu tava voando de São Paulo pra Nova York, pra Paris. E agora eu voei de Paris pra Londres. Isso foi um momento ‘Breakfast at Tiffany’s’

“Muitas vezes eu gostaria de saber escrever. Juntar as frases pra formar um livro.”

Leonilson não escreveu, mas deixou uma série de gravações como essa transcrita­s numa autobiogra­fia mantida em segredo há quase duas décadas. O volume, numa rara fotocópia guardada por uma amiga do artista, ronda como fantasma o recém-lançado catálogo que lista a obra completa deste que foi um dos maiores nomes da arte do país no fim do século passado.

Enquanto um livro elenca todos os dados de sua obra plástica, sua vida íntima continua escondida à sua revelia.

Numa das fitas cassete que deixou, ele contava que daria de presente as gravações a um amigo, para que transforma­sse suas confissões desarranja­das numa espécie de autobiogra­fia autorizada.

Seis anos depois da morte de Leonilson, vitimado pela Aids, aos 36, em 1993, “Frescoe Ulisses” estava pronto, mas não foi publicado por um veto de seus herdeiros.

Na época, o ato causou um racha entre os amigos do artista e sua família, que não queria expor a homossexua­lidade de Leonilson —o pivô da controvérs­ia eram trechos em que ele narrava um encontro com um soldado israelense no banheiro de um avião.

“Fiquei olhando pra ele e perguntei se ele achava estranho aquilo. Ele falou que não”, contou o artista. “Eu passei a mão na barriga dele e ele já tava excitado. Ele é bem magro e pálido, mas tem um pau grande e bonito. Teve uma hora que ele caiu pra um canto da parede e ficou encostado e era uma imagem linda porque ele tinha aquele rosto lindo, aquele cabelo escorrido, os olhos profundos e aquele pau. Ele gozou rápido na pia e eu nem tinha gozado.”

O episódio de poucos minutos se desdobra à exaustão em comentário­s do artista, que fantasia sobre o tal garoto página atrás de página, dando versões e desfechos distintos a um romance impossível.

Mais do que uma aventura erótica, essas suas lembranças distorcida­s revelam muito sobre a solidão que tanto atormentou Leonilson em vida e que transparec­e em sua obra. Nesse sentido, são os alicerces secretos do mundo quebrado, atravessad­o de paixões não correspond­idas que arquitetou em milhares de pinturas, desenhos e bordados.

“Tá faltando alguém. A verdade é que eu ando pela casa e tá faltando um col- chão de casal aqui”, narra o artista. “Tá faltando alguém pra me dar uns beijinhos quando eu acordo. Tá faltando alguém pra me abraçar por trás, me beijar o pescoço e esfregar a língua na minha orelha, lamber o bico do meu peito e me jogar na cama.”

Uma parte bem menos direta e franca dessas gravações já embasou —com o aval da família— dois documentár­ios —um curta de Karen Harley lançado há duas décadas e “A Paixão de JL”, que Carlos Nader estreou há dois anos.

Mas “Frescoe Ulisses” —o nome foi escolha do artista— é um mergulho bem mais profundo em sua vida, dos momentos de glória, de viagens constantes a Nova York, Londres, Amsterdã e Paris, até a descoberta da doença que o mataria em pouco tempo. ODISSEIA Editado por seu amigo Ricardo Ferreira Henrique, estudioso de literatura já morto e que havia se radicado em Berlim, o livro teve uma série de versões, algumas delas lidas pela irmã do artista, Ana Lenice Dias, a Nicinha, que não concordava com a edição.

Entre as exigências, reveladas pela correspond­ência entre Henrique e a artista Leda Catunda, que intermedio­u o contato com a família, estava cortar detalhes de seus encontros sexuais e trocar os nomes de seus amantes, parentes e amigos.

Todos eles, a não ser seus galeristas, aparecem na versão final como personagen­s da “Odisseia”, de Homero. Mas não foram alterados nem apagados os —poucos, mas intensos— relatos sobre sexo.

No rastro da publicação de seu catálogo completo, que lista suas 3.400 obras, a pressão vem aumentando para que saia também seu diário íntimo, algo que a família agora se inclina a autorizar.

“Uma hora vai ser publicado, é questão de tempo”, diz o galerista Eduardo Brandão, que foi um dos melhores amigos do artista. “É uma farsa isso não estar no catálogo quando tanta gente estuda Leonilson. Esse livro é maior do que ele, fala de uma geração inteira, da dor de uma geração.”

O momento da descoberta da Aids, aliás, coincide com um hiato nas gravações. Leonilson volta a falar só um mês depois do exame. Enquanto avança a doença, suas últimas páginas ficam mais secas, clínicas, uma contagem exasperant­e das células de defesa. Sua última frase foi “parece que levei uma surra”.

Não tenho pra onde correr, eu tenho que enfrentar a selva, eu tenho que encontrar os galos, os leões e as águias, eu tenho que encontar a fera que me ataca e o cara que mata essa fera que tá me atacando “Ele é uma estrela no meu caminho. Ele é um puta cara. Quando a gente transava era complicado. Eu não tinha muito tesão por ele. Às vezes você encontra um cara pro pau e não pro coração

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O artista Leonilson Leia mais trechos em folha.com/no1909105
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