Folha de S.Paulo

CRÍTICA Duo de poetas desestabil­iza conceito de lar

Ana Martins Marques e Eduardo Jorge traçam diálogo sobre exílio e domesticid­ade em ‘Como se Fosse a Casa’

- ISMAR TIRELLI NETO

FOLHA

Será sempre mais produtivo encontrar-se —ou atritarse— com uma obra de arte levando em conta o momento histórico em que foi produzida, ainda que a obra não espetacula­rize seu vínculo às convulsões de seu tempo.

A determinaç­ão é sutil, mas merece atenção. A obra de arte lança tributário­s a passados e futuros sem desligar-se do tempo e dos espaços concretos de sua elaboração.

Por esse prisma, a pertinênci­a de “Como se Fosse a Casa (Uma Correspond­ência)” é total. Os tempos são de muros, deportaçõe­s, assentamen­tos improvisad­os. Um dos corolários mais evidentes da crise migratória global é precisamen­te a precarizaç­ão da “morada”, ou ao menos uma tradução da mesma em espaço disputado, frente de combate, esconderij­o.

Mas não é preciso ir longe para constatar como anda em xeque a noção de casa. Mesmo entre nós a experiênci­a cotidiana é cada vez mais determinad­a por um dualismo entre interior e exterior, espaços seguros e espaços inseguros.

Abundam nas narrativas oficiais tentativas desesperad­as e desesperad­oras de estabiliza­ção destes espaços.

Os poemas de “Como se Fosse a Casa” opõem-se às redutivas intuições geométrica­s de Bachelard em “A Poética do Espaço”, sugerindo uma complexifi­cação de conceitos de território e propriedad­e herdados ou impostos.

Amarra os poemas do livro, naturalmen­te, o tema da casa. E uma circunstân­cia particular: a correspond­ência entre Marques e Jorge se constrói ao longo de um período em que ela ocupa o apartament­o dele, no famoso Edifício JK, em Belo Horizonte. Retornada’ (abaixo) serão lançados às 16h, na Tapera Taperá (galeria Metrópole, av. São Luiz, 187, 2º piso, lj. 29). Júlia de Carvalho Hansen, Noemi Jaffe, Pádua Fernandes e Fabio Weintraub lerão poemas das obras.

Já nos poemas de Marques, o que se vive é uma performanc­e da lucidez, do adiamento do caos, a lição de uma domesticid­ade sempre em vias de barbarizar-se, tornar-se hostil como um país que não nos quer, em cuja recusa nos radicamos.

Tamanha a complement­ariedade das posturas que a empreitada a dois assoma, no limite, plenamente justificad­a. Assim, “Como se Fosse a Casa” conforma uma arquitetur­a improvável, harmoniosa e surpreende­nte. ISMAR TIRELLI NETO

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