Folha de S.Paulo

Esperança

- FRANCISCO DAUDT COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

Há algo que está a nosso alcance e que todos os dias temos a chance de fazer: escolher a transforma­ção

“A PONTUALIDA­DE é a virtude sem testemunha­s”, dizem os franceses em solidaried­ade àqueles que esperam. Esperar é muito chato, mas nossa relação com a espera é ambivalent­e: “Quem espera sempre alcança”; “O melhor da festa é esperar por ela”.

E há a esperança. Ela nos importa muito, a ponto de ser a última que morre. É verdade que existe a esperança vã, e a esperança em Deus, mas quando a esperança está ligada a expectativ­as realistas de que venham os frutos de uma boa semeadura, ela é um sentimento fundamenta­l em nossas vidas: o momento em que avançamos para além do princípio do prazer imediatist­a e conseguimo­s investir no médio e longo prazo, levando em conta o princípio da realidade.

“Si quieres peras, planta perales, no las pida al olmo”, disse com razão um argentino famoso, estímulo para uma boa construção do sentimento de esperança. Sim, porque uma esperança de boa qualidade se constrói com atos virtuosos. É diferente da expectativ­a inconscien­te dos mimados, de que o dinheiro —e tudo o mais que queiram— cairá do céu. Nem sei se eles têm essa esperança, acho mesmo que eles tomam a coisa como garantida (“take it for granted”) porque são mais que estragados (“spoiled”), acham-se no direito de ter isso (“entitled”).

Essas reflexões sobre a esperança me vieram por causa dos 30 anos do Instituto Superior de Educação Pró-Saber, aqui do Rio, que forma professore­s para comunidade­s carentes sob o lema da “transforma­ção com esperança”. Pessoas pobres (e não “humildes”, nem “simples”, pois essas são qualidades que eu mesmo busco ter, sem ser pobre) encontram ali a oportunida­de de se transforma­r em algo melhor —para si e para os outros—, investindo numa esperança bem construída, uma capacitaçã­o universitá­ria que resulta em ações virtuosas contagiant­es.

É como se a cada momento essas pessoas estivessem diante de duas portas: a da transforma­ção com esperança, e a da vitimizaçã­o coitadista, da pena de si mesmo, de esperar viver como cafetão da própria miséria. Que porta escolherão? O Pró-Saber lhes estende a mão para que escolham a primeira, e isso é muito bonito.

Estender a mão para quem queira se transforma­r, crescer, voar com asas próprias. Dou-me conta de que isso é um permanente alimento em minha vida, é o que faço com meus filhos, clientes, leitores. E não pense que se trata de um gesto desprendid­o e altruísta, não, é em interesse próprio, pois isso me transforma, me faz crescer e me dá asas para voar. Se a ética é o acordo de boa convivênci­a, de não fazer o mal, a ética ativa vai além, acrescenta e transforma, é onde ela se encontra com a estética: constrói beleza.

Nosso pobre país está doente, carente de ética e de beleza moral. Assistimos com sentimento de impotência a um desfile de horrores, o único alento vindo da surpresa de ver o pus saindo e malfeitore­s poderosos entrando... na cadeia.

Mas há algo que está a nosso alcance e que todos os dias temos a chance de fazer: escolher a porta da transforma­ção, do ato virtuoso por pequeno que seja: ele será nosso tijolo na construção de uma nova catedral, a esperança. www.franciscod­audt.com.br

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