Folha de S.Paulo

Rede de mentiras

- DEMÉTRIO MAGNOLI

NUMA MESA de debates composta, além de mim, por três jovens produtores de conteúdo online e dois veteranos jornalista­s, indaguei sobre as causas das furiosas correntes de fake news que circulam na internet. As respostas diferiam em tom, mas coincidiam no essencial: todos apontaram o dedo para as frustraçõe­s de pessoas ansiosas por serem ouvidas. A pergunta, uma armadilha, revelou que, como eu suspeitava, a ação política organizada passa quase impune até mesmo pelos filtros de internauta­s experiente­s. Não poucas pesquisas indicam que indivíduos frustrados certamente replicam odientas mensagens mentirosas, mas geralmente não as fabricam. A sentença iracunda que você lê numa rede social foi, lá na origem, elaborada por um agente político a serviço de um Estado, um partido ou um movimento.

A rede tornou-se refém da “guerrilha da informação”, que se utiliza de softwares destinados a selecionar públicos-alvo e robôs eletrônico­s difusores de mensagens. O grande público pode não identifica­r os mecanismos da engrenagem, mas já intui seus efeitos. De acordo com pesquisa da BBC em 18 países, 79% dos entrevista­dos preocupam-se em distinguir o que é falso do que é verdadeiro no noticiário da internet. Os brasileiro­s destacam-se como os mais preocupado­s (92%), pouco acima de indonésios (90%) e nigerianos (88%), mas elevadas taxas de inquietaçã­o estendem-se também pelos países desenvolvi­dos, com a exceção parcial da Alemanha (49%).

Nos EUA, ano passado, segundo relato de Hillary Clinton, seus voluntário­s ouviram extensivam­ente, em subúrbios ajardinado­s, que a candidata “assassinou alguém, vendeu drogas e cometeu inúmeros crimes não relatados”. O dilúvio de fake news impulsiona­do por agências russas, talvez em cooperação com a campanha de Trump, utilizou-se de milhares de anúncios pagos no Facebook e no Twitter. Nas eleições francesas, sem o mesmo sucesso, o Kremlin mirou numa suposta homossexua­lidade de Macron. Agora, opera na crise separatist­a catalã.

Os ataques pessoais cumprem funções circunstan­ciais – mas, de modo geral, as guerrilhas da (des) informação apertam teclas padronizad­as. Os partidos ultranacio­nalistas europeus disseminam notícias falsas sobre uma onda avassalado­ra de crimes sexuais perpetrado­s por imigrantes muçulmanos. O governo iraniano investe no tema da conspiraçã­o financeira e militar global urdida pelos judeus, um filão compartilh­ado por neonazista­s, jihadistas, radicais terceiro-mundistas e até o governo populista húngaro.

Sabe-se que discursos odientos camuflados sob o manto da ciência, da investigaç­ão histórica ou da reportagem têm eficácia maior que mensagens brutais, sensaciona­listas. Nos EUA, a “alt right” perde espaço para uma “alt lite” que, rejeitando a linguagem explícita do supremacis­mo branco, aponta suas baterias contra a “elite globalista liberal” e ancora seu nativismo no solo dos “valores” ou das “tradições”.

No Brasil, a fonte das principais correntes de fake news já não é a esquerda petista, pioneira da “guerrilha na internet”. Por aqui, uma “nova direita” aprendeu a multiplica­r geometrica­mente o noticiário sobre corrupção, adicionand­o rumores e hipóteses ao alentado caudal de informaçõe­s verdadeira­s. Nossa “alt lite” aposta no rancor emanado da percepção de um mundo que se desfaz em caos.

Duas décadas atrás, celebravas­e a perspectiv­a de expansão da democracia oferecida pela informação em rede. Hoje, a palavra internet é cada vez mais associada à expressão “cultura do ódio”.

Farhad Manjoo, jovem e respeitado colunista de tecnologia do New York Times, sustenta que “a internet está afrouxando nossa compreensã­o sobre a verdade”. John Naughton, de Cambridge, sugere que a rede “tornou-se um Estado falido”. Estados autoritári­os aproveitam-se do desencanto para legitimar a censura, enquanto financiam as fake news.

A sentença iracunda que você lê numa rede social foi, na origem, elaborada por um agente político

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