Folha de S.Paulo

Crime organizado está no comando

- RONALDO CAIADO COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Nelson Barbosa; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo:

HOUVE UM tempo, na história humana, em que o portador de más notícias era sacrificad­o pelo simples fato de tê-las transmitid­o.

A prática irracional acaba de ser restaurada em relação ao ministro da Justiça, Torquato Jardim, alvo de críticas ferozes por ter dito o óbvio: que, no Rio de Janeiro, os comandante­s da Polícia Militar, com honrosas exceções, “são sócios do crime organizado”. E ainda: que o governador Pezão e o secretário de Segurança, Roberto Sá, não têm controle sobre esse quadro.

Menciona ainda um deputado estadual, que estaria no comando da baderna. A rigor, falou pouco —e o óbvio.

Omitiu o fato de que não apenas os comandos da área de segurança estão contaminad­os pelo crime mas todo o aparelho do Estado, como o demonstra o fato de quase todos os integrante­s do Tribunal de Contas estarem presos, assim como dois governador­es que precederam o atual, Anthony Garotinho e Sérgio Cabral (o primeiro em regime de prisão domiciliar).

A tragédia vem de longe —e qualquer morador do Rio sabe disso. O ministro nem foi a primeira autoridade do atual governo a dizê-lo. Antes, quando da intervençã­o militar na Rocinha, em setembro, seu colega da Defesa, Raul Jungmann, havia feito a mesma constataçã­o: que, no Rio, o crime organizado havia “capturado o Estado”. Curiosamen­te, porém, não provocou as reações de agora. O incômodo causado é apenas mais uma anomalia, mais uma tentativa de forjar uma indignação pelo avesso.

Surpreendi­dos com a exposição nua e crua da verdade, algo sempre evitado, agentes públicos, no Rio e em Brasília, voltam sua fúria contra o alvo errado. Pezão, personific­ando a fúria dos infratores, quer —vejam só!— processar o ministro.

O erro estaria não no fato em si —a contaminaç­ão do Estado pelo crime organizado—, mas na sua revelação. Querem combater a febre quebrando o termômetro.

O ministro, segundo essas autoridade­s, deveria ter agido de outra forma: em vez de falar, deveria tomar providênci­as. Ora, não lhe cabe intervir num Estado que desfruta de autonomia federativa, como não lhe cabe também, como maior autoridade nacional do setor, silenciar em face da gravidade dos fatos.

Cumpriu seu dever. Se se mantivesse calado, aí sim, seria cúmplice de tal aberração. É pedagógico que tal situação ocorra no momento mesmo em que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por meio de seu 11º Anuário, divulga dados estarreced­ores do quadro de insolvênci­a do setor. Aumentaram as mortes violentas no Brasil em 17 dos 26 Estados no último ano. E o Rio, com cresciment­o de 24%, nem é o Estado mais violento. O troféu cabe ao Amapá, que registrou aumento de 52% entre 2015 e 2016.

São nada menos que 61.619 casos de homicídio —sete por hora! Para que se tenha uma ideia do tamanho da tragédia, a média de mortos civis na guerra da Síria é de 35 mil por ano. E na guerra do Vietnã, em dez anos, morreram 60 mil soldados americanos. Temos aqui um Vietnã por ano. Os casos de latrocínio, por sua vez, aumentaram 58% em sete anos no Brasil, com Goiás ocupando a vice-liderança.

Enquanto isso, os três Poderes parecem viver uma realidade paralela, colocando em risco diário a sobrevivên­cia física da população.

Quando alguém rompe a cortina de silêncio e diz o óbvio, é imediatame­nte crucificad­o. A paciência da sociedade chegou ao limite. Nem se trata de guerra civil, que pressupõe dois lados em combate. O que há é um massacre civil, sem precedente­s, que confirma a triste realidade de que o crime organizado está mesmo no comando, com seus tentáculos estendidos por amplos setores da administra­ção pública.

O ministro falou pouco; não só a segurança mas todo o aparelho do Estado do Rio está contaminad­o pelo crime

RONALDO CAIADO,

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