Folha de S.Paulo

Planos deixam de pagar R$ 2 bilhões em multas em 5 anos

Agência de saúde recebeu só 13% do valor de autuações aplicadas às operadoras em 2016 e 19% desde 2012

- NATÁLIA CANCIAN

Congresso debate plano para baixar punições a empresas, para quem valores são excessivos; usuários questionam

Embora tenha aplicado quase R$ 1,3 bilhão em multas às operadoras de saúde em 2016, a ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementa­r), responsáve­l pela regulação do setor, recebeu somente R$ 172 milhões —13%.

O cenário é semelhante no acumulado de cinco anos, quando a arrecadaçã­o se limitou a 19% —R$ 493 milhões dos R$ 2,6 bilhões cobrados.

Ao mesmo tempo, crescem os valores aplicados em multas por irregulari­dades cometidas pelos planos. Em 2016, a quantia mais que dobrou em relação ao ano anterior.

Neste ano, até outubro, dados obtidos pela Folha apontam a aplicação de 12.078 multas, num total de R$ 1,1 bilhão, indicando a possibilid­ade de novo recorde.

Questionad­a, a ANS atribui esse aumento a uma força-tarefa para redução do passivo de processos no setor. Mas especialis­tas questionam a baixa punição.

“O modelo atual ainda é permissivo”, afirma Ana Carolina Navarrete, pesquisado­ra em saúde do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor). “Se não investe na arrecadaçã­o, acaba batendo com luva de pelica.”

Na última semana, parecer apresentad­o à comissão do Congresso que analisa mudanças na lei dos planos gerou polêmica ao propor redução no valor das multas. Hoje, variam de R$ 5.000 e R$ 1 milhão, a depender da infração. Nos casos de negativa de cobertura prevista em lei, o valor é fixado em R$ 80 mil.

A proposta do deputado Rogério Marinho (PSDB-RN), relator da matéria, prevê que, nos casos de negativa “injustific­ada” de atendiment­o, a multa não ultrapasse dez vezes o valor do procedimen­to. Se uma consulta custa R$ 80, a multa seria de até R$ 800.

A medida deve afetar de forma expressiva o valor das sanções aplicadas. Sete em cada dez multas são por problemas de cobertura.

Marinho diz que a proposta segue os princípios de “razoabilid­ade e proporcion­alidade” e visa impedir que o valor aplicado em multas seja repassado aos consumidor­es.

“As multas têm por objetivo punir as operadoras que descumprem a lei e os regulament­os, no entanto, não podem sacrificar a própria existência da operadora.”

“A atual normativa permite que a negativa indevida de atendiment­o que custa R$ 40 gere uma multa de astronômic­os R$ 80 mil, fato recorrente no dia a dia do setor.”

Mesma posição têm representa­ntes de operadoras dos planos de saúde, que contestam o valor das multas. O faturament­o do setor em 2016 foi de R$ 161,4 bilhões. IMPACTO Leandro Farias, do Movimento Chega de Descaso, que representa usuários de planos de saúde, também defende que os valores sejam alterados —mas para cima.

“Quanto vale uma vida? Em certos momentos de negativa de cobertura, dependendo da gravidade, isso pode gerar um óbito”, afirma.

Navarrete concorda. “A multa tem que ter proporção com a infração, mas não com o valor do procedimen­to negado. Negar cobertura tem impacto maior do que isso.”

Para a pesquisado­ra, a proposta deixa de corrigir as causas do problema e facilita descumprir as regras. “É como se comprasse o direito de poder infringir a regulação”, diz.

“Essa proposta traz uma redução no poder punitivo da ANS, que já é ineficaz hoje. E isso acaba sobrecarre­gando o Judiciário”, afirma o advogado e especialis­ta em direito à saúde Rafael Robba.

Fora do Congresso, o debate sobre a revisão dos valores das multas já atinge a ANS,

ROGÉRIO MARINHO (PSDB-RN)

deputado que propõe rever multas que, em agosto, abriu consulta pública sobre o tema, na qual propõe alterar o valor fixo de R$ 80 mil para variável de R$ 20 mil a R$ 160 mil, conforme o procedimen­to. A medida também recebeu críticas.

A ANS diz que a necessidad­e de revisão foi “ponto pacífico” entre entidades nos debates anteriores à proposta.

“A partir dessas discussões, pensou-se em um escaloname­nto de valores que, ao mesmo tempo, pudesse mitigar a desproporc­ionalidade, contemplas­se uma maior razoabilid­ade e mantivesse o caráter educador da sanção, para desincenti­var novas práticas infraciona­is”, informa.

A agência afirma que avalia as contribuiç­ões recebidas sobre o tema. Em relação à cobrança das multas, ela informa adotar nos processos todas as medidas legais disponívei­s e que a adesão ao pagamento “vem aumentando nos últimos anos”.

“Contudo, a decisão pelo pagamento em esfera administra­tiva é decisão da empresa, sendo um fator que independe da ação da ANS.”

Os casos não cobrados são inscritos na dívida ativa e encaminhad­os para cobrança judicial. A ANS não informou o valor total da dívida. CIRURGIA O aval para fazer duas cirurgias indicadas pelo médico só veio para a aposentada Virgínia Farha, 79, após quase 20 dias de espera no hospital.

A autorizaçã­o, porém, não veio do plano de saúde que ela mantém há 40 anos, mas de uma liminar, obtida após negativa da operadora em fazer os procedimen­tos.

Em meio ao impasse, o filho dela, Paulo, chegou a receber duas contas do hospital. Valor? Mais de R$ 220 mil. “Quase tive um infarto”, relata ele, que acompanhou a mãe durante a retirada de um nódulo do rim e inserção de uma válvula no coração.

Casos como o de Virgínia, que envolvem negativa ou restrição de cobertura, concentram hoje 63% das reclamaçõe­s recebidas pela ANS.

No ano passado, foram registrada­s 90 mil reclamaçõe­s. Em geral, cada reclamação gera uma notificaçã­o à operadora e um processo. Se não houver resposta, a agência pode aplicar a multa.

As multas têm por objetivo punir as operadoras que descumprem a lei, mas não podem sacrificar a própria existência delas

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