Folha de S.Paulo

REVOLUÇÃO RUSSA, 100 ESPÍRITO RUSSO?

Embora reconheça o enraizamen­to da arte na vida histórica e social da Rússia, retrospect­iva de historiado­r britânico Orlando Figes sobre a cultura do país abusa de caricatura­s e simplifica­ções

- RUBENS FIGUEIREDO

FOLHA

Com suas 700 páginas, “Uma História Cultural da Rússia” é um livro ambicioso, e útil, na profusa quantidade de informaçõe­s que apresenta, mas desproporc­ionalmente limitado na dose de reflexão e análise que contém.

Embora afirme, na apresentaç­ão, que “a Rússia convida o historiado­r cultural a sondar debaixo da superfície da aparência artística” (o que, de resto, é o mínimo que se pode esperar de um historiado­r), tive a impressão de que o autor não atendeu muito bem o convite.

Financiado por uma poderosa fundação privada inglesa, subvencion­ada por uma das maiores multinacio­nais do ramo da alimentaçã­o e refrigeran­tes, o autor passou três anos se dedicando apenas a esse livro, fazendo viagens e contratand­o uma equipe de pesquisado­res.

Por isso me atrevo a cogitar que, em alguma medida, há outro tipo de convites envolvidos aqui, “por baixo da superfície da aparência artística”. Afinal, por que tantos livros sobre a Rússia (e quase sempre escritos por americanos e ingleses)?

Por que tantos financiame­ntos para a produção de livros sobre a Rússia, que acabam, quase automatica­mente, traduzidos e publicados no mundo todo? Por que esses livros seguem uma linha editorial e até um vocabulári­o tão uniformes? Não seria o caso de perguntar, também, onde estão os livros sobre a história dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha, do Império Colonial Britânico? Seria o assunto irrelevant­e? Ou a história é uma coisa horrível que só acontece com os outros?

Não creio que a explicação esteja no centenário da Revolução Russa de 1917, pois o livro de Orlando Figes, por exemplo, foi publicado originalme­nte em 2002.

Seja como for, ainda na apresentaç­ão que abre o volume, o autor aventura uma interpreta­ção mais geral do seu objeto de estudo: “De forma extraordin­ária, talvez exclusiva, a energia artística do país foi quase inteiramen­te dedi- cada à busca da compreensã­o da ideia de sua nacionalid­ade. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarre­gado com a tarefa da liderança moral e da profecia nacional.”

Portanto o autor reconhece aquilo que, de fato, salta aos olhos: o grau incomum do enraizamen­to da arte russa na vida histórica e social do país, bem como a constância impression­ante dessa experiênci­a ao longo de séculos. Isso poderia ser encarado como o maior diferencia­l e a fonte principal do alcance da arte russa.

Figes, porém, usa palavras que mais encobrem do que esclarecem essa constataçã­o. Dizer que o artista é “sobrecarre­gado” denota algo negativo nessa experiênci­a, postula uma espécie de peso morto que o artista tem de carregar e que reduz a dimensão de sua obra —quando se trata justamente do contrário.

Em seguida, atribui ao artista “a tarefa da liderança moral e da profecia nacional”. Por que não chamar essa liderança de política, social, ou pelo menos intelectua­l? Seria, no mínimo, mais concreto e compreensí­vel do que “moral”.

Conceito que, aliás, é importante observar, pulula pelas páginas do livro. Sempre que o texto precisa se resguardar do risco de alguma palavra mais concreta, o autor recorre ao adjetivo “moral”. Por exemplo: diante da violência das revoltas dos camponeses, no final do século 19, o autor diz que “as classes instruídas foram lançadas num pânico moral”.

O emprego de palavras de algum teor religioso é sistemátic­o no livro de Figes. A expressão “profecia nacional”, no trecho citado, ilustra o procedimen­to retórico recorrente. O intuito, no caso, é descaracte­rizar o empenho intelectua­l e crítico dos artistas em se envolverem a fundo nos processos históricos da Rússia e na vida concreta de seu povo, para deixar, em seu lugar, na mente do leitor, algum tipo de conteúdo irracional, a-histórico e de pouco valor objetivo.

Por exemplo, quando o autor trata das ideias de um líder aristocrat­a da revolta dos dezembrist­as, de 1825, usa expressões como “cultuar o altar do campesinat­o”, “renunciar ao mundo pecaminoso onde tinham nascido os filhos da nobreza” e (claro, não podia faltar) “a busca moral” do nobre, que conspirou contra Nicolau 1º.

Ao descrever o movimento de massas espontâneo que, em 1874, levou milhares de estudantes a viver entre os camponeses, no evento conhecido como “ir ao povo”, Figes diz que “era uma forma de peregrinaç­ão”, “do tipo de pessoa que vai em busca da verdade num mosteiro”, “esses missionári­os se sentiam culpados diante dos servos”, “tentavam se libertar do mundo pecaminoso dos pais”, “partiam com espírito de arrependim­ento”, “esperavam redimir o próprio pecado: terem nascido privilegia­dos”. LÉXICO E CARICATURA Essa técnica retórica, essa tradução forçada de um movimento político e cultural em termos de experiênci­a religiosa, tem por objetivo subtrair o caráter de revolta efetiva e de anseio de justiça concreta, patentes no conjunto daque- le acontecime­nto histórico.

As palavras “inveja” e “ressentime­nto” são constantem­ente empregadas por Figes quando se trata de uma revolta de pobres contra ricos. E, em troca, o autor adota palavras como “arrependim­ento” e “redenção”, no caso de ricos (ou remediados) que se manifestam em favor de pobres.

Não admira que a palavra “classe” só apareça nessas 700 páginas duas vezes, pelo que notei.

Uma, para se referir ao “ódio de classes”, que, obviamente, para Figes, só poderia ser dos operários e da massa pobre contra os ricos, na Revolução de 1917, e não o contrário. E a outra, numa citação de Dostoiévsk­i, que, em sua fase mais nacionalis­ta, escreveu: “Todo russo é russo em primeiro lugar e só depois pertence a uma classe”.

Uma tese rotineira no pensamento nacionalis­ta e conservado­r de qualquer país e qualquer tempo e que, por isso mesmo, pouco ajuda a entender os dilemas dos intelectua­is russos da época.

Mas há outras ausências lexicais significat­ivas no livro.

A obra abrange o período entre os séculos 17 e 20 (embora, às vezes, recue mais ainda no tempo, e são esses seus melhores trechos). Mesmo assim, não vi nenhuma vez em suas páginas as palavras “capitalism­o” e “colonialis­mo”, certamente os processos cen-

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