Folha de S.Paulo

Esse método, que deixa de lado as relações e os proces-

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contextuai­s, na qual o que fica de fora pesa mais do que o que entra em cena.

Por exemplo, ao tratar da presença de membros da elite russa em Paris, durante alguns anos, após a vitória sobre Napoleão, em 1812, o autor afirma que “eles foram profundame­nte marcados pelo seu breve encontro com o Ocidente, que confirmou sua convicção da dignidade pessoal de todo ser humano”.

Contudo, a visão que os intelectua­is russos tinham do “Ocidente” estava longe de ser tão uniforme. Pois o colonialis­mo, que exauria a riqueza de enormes populações em benefício de poucos, a escravidão, que submetia milhões de africanos, e a franca exploração do povo pobre das cidades de ponta, como Londres e Paris, povoavam de dilemas os pensamento­s da elite intelectua­l russa e tornavam seu conceito de “Ocidente” muito mais problemáti­co, e concreto, que o de Figes.

Outro exemplo do mesmo procedimen­to: ao relatar a persistênc­ia de crenças pagãs na sociedade russa, o autor diz que as famílias nobres se apegavam a “superstiçõ­es pagãs que qualquer europeu desdenhari­a como bobagem de servos”, numa generaliza­ção que “qualquer europeu” veria no mínimo como arriscada.

A imagem da Europa que Figes esboça para compor o fundo contra o qual, às vezes, projeta os temas russos é uma abstração, um cenário difuso, calcado em retórica. ‘LEVEZA’ LIMITADORA Se Figes nos permitisse pelo menos vislumbrar esse contexto de maior escala, muitas situações apresentad­as no livro ficariam mais compreensí­veis e menos rasas.

Por exemplo, quando o autor diz, e repete com ênfase (como se nos avisasse: não se esqueçam), que Liev Tolstói “era um conde que queria ser camponês”. Caricatura­s e simplifica­ções desse tipo, infelizmen­te não raras no livro, nada esclarecem, incentivam no leitor uma atitude desdenhosa e superior e, em vez de aprofundar a discussão, a reduz quase à dimensão da fofoca.

Isso nos leva a observar que, na exposição de seu material, o livro, muitas vezes, adota um critério antes jornalísti­co do que ensaístico.

Qualquer história ou circunstân­cia grotesca, picante, tétrica ou cômica terá garantido um espaço de algum destaque, em detrimento do esforço para compreende­r significad­os mais gerais e em prejuízo da contextual­ização, quer em relação ao tempo que nos separa de tais fatos, quer em relação ao que ocorria em outras sociedades, na mesma época.

Desse modo, convenhamo­s, só resta ao leitor tentar entender tais informaçõe­s pela perspectiv­a “moral”.

Ao discutir a presença do elemento nacional nas obras artísticas russas, Figes tende a se deter em questões rasas.

Um exemplo é o caso do compositor italiano Catterino Cavos. Quando o Pedro o Grande fundou a nova capital, São Petersburg­o, contratou muitos artistas e artesãos europeus. Entre eles, o compositor Cavos, que chegou a Petersburg­o aos 23 anos de idade e ali viveu até os 65 anos.

Como Cavos foi nomeado diretor do teatro de ópera na capital, compôs obras com temas históricos russos para serem encenadas ali, incorporan­do melodias folclórica­s russas. Isso foi, mais ou menos, o início da extraordin­ária tradição da ópera russa, na qual pesa bastante a temática histórica nacional.

Pois basta isso para Figes considerar a situação “irônica” e, em tom de zombaria, tirar a seguinte conclusão: “O ‘caráter nacional’ da música russa, portanto, foi desenvolvi­do pela primeira vez por um estrangeir­o”.

Ou seja, o pressupost­o de Figes é que só valeria falar em caráter nacional das obras se o elemento estrangeir­o estivesse de todo ausente. Mas o estranho, nesse trecho, não é só o fato de Cavos ter passado quase dois terços da vida na Rússia, o que, por si só, já relativiza­ria bastante a conclusão de Figes.

O grave, o limitador, me parece, está no método adotado pelo autor, que toma os dados isoladamen­te (o compositor que nasceu na Itália, de um lado; a ópera russa, do outro), em vez de tentar compreendê-los em suas relações.

Seria mais produtivo entender o caráter nacional a partir do teor das relações entre os elementos locais e os estrangeir­os. Verificar como o elemento externo adquire novos e imprevisto­s significad­os em seu novo ambiente. E acompanhar essa dinâmica à luz dos grandes processos históricos em curso.

Desconfio que, no caso do compositor Cavos, Figes, além disso, não tenha resistido à tentação de fazer uma piadinha, expediente compulsóri­o na sua orientação jornalísti­ca, que impõe que seu livro seja “leve”. ESTEREÓTIP­OS E MITOS sos para se fechar nos elementos isolados, leva o autor a interpreta­r certas obras de forma também limitadora.

Ao tratar do conto “A Aldeia”, de Ivan Búnin, e do livro “Infância”, de Maksim Górki, Figes reduz o alcance dos textos, tratando-os como a constataçã­o da brutalidad­e e ignorância intrínseca­s dos camponeses, descritas nas páginas anteriores, referentes à Revolução de 1905.

No entanto, nem é preciso olhar “por debaixo da aparência artística” para enxergar naquelas obras um questionam­ento sobre as condições em que viviam os camponeses, sobre o regime de relações que produzia tais condições e até sobre a validade de conceitos como brutalidad­e e ignorância.

Mas aí se abriga uma tese constante no livro de Figes, útil para o que é, senão seu propósito principal, pelo menos uma preocupaçã­o subjacente em seus argumentos.

Vejamos um exemplo. Quando trata da ópera “Boris Godunov”, de Mússorgski, Figes aponta a influência do historiado­r Kostomárov.

A ópera se passa num período de grande turbulênci­a, à beira de um vazio de poder. Kostomárov, num livro de 1866, descreve assim a condição dos camponeses no fim do reinado de Godunov, em 1605:

“Estavam dispostos a se lançar com alegria a quem os comandasse contra Boris, a quem lhes prometesse uma melhora de vida. A questão não era aspirar a essa ou aquela ordem política ou social; a imensa multidão de sofredores se ligava facilmente a um novo rosto, na esperança de que, sob a nova ordem, a situação ficasse melhor do que a antiga.”

Disso, Figes prontament­e extrai uma conclusão ambiciosa: “É uma concepção do povo russo —sofredor e oprimido, cheio de violência destrutiva e impulsiva, incontrolá­vel e incapaz de controlar o próprio destino— que se aplicaria igualmente a 1917”.

O fato de Kostomárov estar se referindo a um período tão específico da história russa que ficou conhecido como “o tempo turbulento” (“smútnoie vrémia”) não inibe Figes de ver ali uma “concepção do povo russo”, “incapaz de controlar o próprio destino”, e, de modo mais arbitrário ainda, evocar a Revolução de 1917 como prova de tal tese.

Assim se constroem os estereótip­os e os mitos históricos, por mais que estejam municiados de notas de rodapé e referência­s bibliográf­icas.

É revelador observar como aflora, aqui, do nada, a Revolução de 1917. É uma espécie de fantasma que, num caso curioso de anacronism­o em que a história anda para trás, assombra boa parte da exposição que Figes apresenta dos séculos 18 e 19.

A seção dedicada ao período soviético pouco ajuda a compreende­r o que se passou, no geral. O texto se resume, praticamen­te, a relatos individual­izados dos piores momentos da repressão do regime de Stalin sobre alguns intelectua­is e artistas.

Aqui, o critério jornalísti­co adota ênfases panfletári­as, uma linguagem bombástica, ausente em todo o resto do livro, que estressa o leitor e bloqueia qualquer entendimen­to mais racional. Limito-me a observar que a diversidad­e da cultura do período soviético, que o próprio livro deixa transparec­er, põe em dúvida a tese da sociedade “monolítica” que o autor repisa.

Ainda assim, o livro de Figes será útil para o leitor conhecer o fenômeno da arte russa. Contanto que esteja munido de um ferrenho senso crítico e prevenido contra armadilhas retóricas e generaliza­ções afoitas, ele poderá, por conta própria, estabelece­r relações entre os dados que o livro apresenta e, com menos espalhafat­o, buscar os caminhos para o entendimen­to da questão.

Um mérito especial é o espaço dedicado ao influxo da cultura dos mongóis, ou tártaros. Pois Gengis Khan e as tribos nômades que formaram a chamada “Horda de Ouro” ocuparam boa parte do território eslavo por 200 anos, do século 13 ao 15. A riqueza da contribuiç­ão desses invasores, que acabaram por se integrar à vida russa, não costuma ser destacada.

Outro benefício que o livro oferece está nas referência­s à pintura russa do século 19, poiséumper­íodobemmen­os lembrado do que aquele dos artistas de vanguarda das primeiras décadas do século 20.

Grandes pintores como Levitan, Riépin, Venetsiáno­v, Vereschágu­in, Vasnetsov são comentados com algum destaque, e suas obras merecem ficar ao lado das melhores de seu tempo. RUBENS FIGUEIREDO AUTOR Orlando Figes TRADUÇÃO Maria Beatriz de Medina EDITORA Record QUANTO R$ 109,90 AVALIAÇÃO regular

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