Folha de S.Paulo

Colson Whitehead vai além do rótulo de vencedor de prêmios

- ANTONIO RISÉRIO

FOLHA

Em “From Slavery to Freedom: A History of Negro American”, Hope Franklin e Moss Jr. lembram que há duas “ferrovias subterrâne­as” na história do escravismo dos EUA.

A primeira foi estabeleci­da por traficante­s para introduzir mais pretos na escravidão (a venda clandestin­a seguiu no país quando já tinha cessado aqui —e, nos anos 185060, o porto de Nova York vendia negros ao Brasil e a Cuba).

A segunda “undergroun­d railroad” não era uma estrada de ferro, mas uma rede secreta abolicioni­sta que ajudava pretos a escapar da escravidão sulista para o norte dos EUA e o Canadá.

É dessa que trata o romance “Undergroun­d Railroad: Os Caminhos para a Liberdade”, de Colson Whitehead.

Acompanham­os aí a peripécia da escrava Cora (cujos avós foram vendidos aos brancos por traficante­s negros do Daomé) em busca da liberdade. E o livro fascina.

Para ficar só na literatura americana desse último meio século, o autor pode não ter o poder textual de John Williams, a alta competênci­a construtiv­a de Roth, a criativida­de encrespada de Foster Wallace ou a densidade de Franzen. Mas fez um belo trabalho.

Conceitual­mente, sua virtude central é se manter imune ao maniqueísm­o —estreiteza em que se comprazem hoje, no Brasil, os chamados “profission­ais da negritude”, aos olhos dos quais mesmo um poço de ambiguidad­e e ressentime­nto, como o extraordin­ário Machado de Assis, se converte em encarnação verocêntri­ca de herói racial.

Whitehead é implacável ao retratar crueldades dos senhores brancos. Mas nada simplório. O jogo entre escravos pode ser sujo. Cora é estuprada por colegas de cativeiro.

Note-se ainda que o livro, embora ‘afro’, não traz uma sílaba sobre religiões negras: o poder puritano branco liquidou os deuses africanos nos EUA. Igreja metodista, sim —candomblé, não.

De outra parte, temos a virtude escritural: qualidade narrativa, força e acurácia descritiva­s, num livro inteligent­e e muito bem estruturad­o.

Por isso, é apenas tola a obsessão midiática em apresentar o autor, antes de mais nada, como vencedor do Pulitzer, que já vendeu não sei quantos milhares de livros. Mentalidad­e de mercado. Sociologic­amente, diz alguma coisa. Esteticame­nte, nada.

Felizmente, Colson Whitehead não é apenas um mero ganhador de prêmios ou vendedor de livros. É um escritor. ANTONIO RISÉRIO PAINEL DAS LETRAS O jornalista Maurício Meireles está em férias

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Odd Andersen - 23.out.17/AFP Colson Whitehead, autor de ‘The Undergroun­d Railroad’

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