CRÍTICA Autor se deixa entrever em reunião de perfis
Com 60 textos, ‘O Príncipe e o Sabiá’ revela aspectos da vida de Otto Lara Resende e retrata mudança da imprensa
Em 1922, quando a família Bloch chegou ao Brasil, Otto Lara Resende estava “obscuramente ocupado em nascer” em São João del Rei.
Ali seu pai, que deu aulas a João Guimarães Rosa, era dono de um colégio —onde certa vez recebeu para concorrida conferência Alceu Amoroso Lima, que era também o crítico Tristão de Athayde.
Rosa guardava daquele tempo permanente lembrança, nos diz Otto. E gostava de elogios: “Cuidava com carinho os artigos laudatórios. Os que lhe eram contrários, ou lhe faziam restrições, guardava de cabeça para baixo. Era o castigo que impunha aos que não apreciavam sua obra...”
Já Tristão de Athayde encarnava para o jovem mineiro a própria glória literária. E ela certa vez entrou na casa de sua família e, diante de seus olhos perplexos, desceu das alturas “para, como qualquer mortal, tomar café com biscoito de polvilho e pão de queijo”.
Ler os perfis reunidos em “O Príncipe e o Sabiá”, que ora reaparece em bem-vinda segunda edição, é percorrer um mundo no qual personagens da política, das letras, do jornalismo e da crônica cotidiana nos são desenhados com pinceladas de destreza literária e afeto, numa escrita que não se atém à exterioridade do vulto, mas está sempre a revelar ou a presumir sua dimensão humana.
O livro, lançado em 1994, dois anos após a morte do grande jornalista e escritor, compila 60 perfis de uma constelação variada, que reúne —além de Adolpho Bloch, Alceu Amoroso Lima e Guimarães Rosa— nomes como Mário de Andrade, Jânio Quadros, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Françoise Sagan, Salazar, Luís Carlos Prestes e Rubem Braga. BIOGRAFIA DISFARÇADA Otto, que não se conciliava com a ideia de escrever uma autobiografia, mencionou certa vez ao editor Luiz Schwarcz o projeto, já “praticamente pronto”, de uma reunião de textos escritos ao longo da vida sobre um leque —então mais restrito—de personagens.
A ideia era oferecer uma galeria de retratos jornalísticos e literários que também permitisse ao leitor entrever o perfil do autor. Era o próprio Otto que se revelaria na tarefa de revelar o outro. Posteriormente, a família propôs novos nomes, e a escritora Ana Miranda encarregou-se da pesquisa que resultou no livro.
Os textos nos remetem a um tipo de relato que extrai sua força e sua graça de uma circunstância histórica em que as fronteiras entre o escritor e o jornalista ainda eram borradas pelo caráter relativamente amador dos dois ofícios.
Otto, como se sabe, faz parte de uma geração de intelectuais e escritores talentosos de Minas —como Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Hélio Pelegrino— que se radicou naquele Rio de Janeiro inteligente, criativo e urbano dos tempos de capi- tal da República.
Começou sua atividade ao fim da Segunda Guerra, quando os jornais ainda se preparavam para assumir “o status e os cacoetes de grandes empresas”, como nota Wilson Figueiredo no posfácio à edição.
Dos primeiros escritos publicados em Minas, onde seu pai era diretor de jornal, à coluna que veio a ocupar na Folha no início dos anos 1990, ele participou por dentro e ativamente desse processo de transformação da imprensa.
Foi cronista, colaborador e também diretor de publicações importantes, como a lendária revista “Manchete” e o “Jornal do Brasil” —e conheceu o mundo da TV ao trabalhar na Globo.
Os perfis de “O Príncipe e o Sabiá” (o título vem do texto dedicado a Rubem Braga) alcançam o objetivo de nos apresentar com encanto e argúcia a alguns dos protagonistas do século 20 brasileiro —e cumprem a promessa de iluminar indiretamente o sujeito que os escreve.
Mas a edição traz ainda um texto de Otto sobre si próprio, que ajuda a completar o retrato deste personagem que se distinguiu em seu humanismo católico, em sua mineirice humorada, em seu talento literário e em sua inclinação para a conversa e o relacionamento. AUTOR Otto Lara Resende EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 59,90 (392 págs.); R$ 39,90 (e-book) AVALIAÇÃO muito bom