Folha de S.Paulo

Notícias são como falsos brilhantes

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UM JORNALISTA recebe um vídeo de dez segundos em que uma mulher moribunda aparenteme­nte está sendo molestada. Atento à circulação das imagens nas redes sociais, produz de imediato um relato jornalísti­co indignado, publicado pelo jornal indiano “The Hindu”.

A notícia baseava-se em interpreta­ção equivocada, segundo apontou o ombudsman do jornal. “Quando a indignação precede a verificaçã­o”, resumiu A.S. Panneersel­van. Versão mais longa daquelas imagens deixa claro que o homem tentava ajudar uma mulher ferida.

O editor do jornal assumiu a responsabi­lidade pelo erro, publicou um pedido de desculpas, removeu o texto das páginas eletrônica­s e criou grupo para reexaminar histórias sensíveis antes de publicá-las.

O episódio ilustra o fato de que os questionam­entos sobre as práticas jornalísti­cas são fenômeno mundial.

Panneersel­van foi o anfitrião da conferênci­a anual da ONO (Organizaçã­o de Ombudsmans de Notícias), realizada em Chennai, Índia, no final de outubro. Durante cinco dias, ombudsmans, ouvidores, defensores do leitor e estudiosos de 15 países espalhados por quatro continente­s discutimos a crescente falta de confiança na mídia e os diferentes perigos e desafios a partir da propagação maciça de notícias falsas.

No encontro, foi divulgada pesquisa riquíssima sobre o consumo de notícia em meios digitais em 36 países, produzida pelo Instituto

Encontro internacio­nal de ombudsmans na Índia debate estratégia­s para revitaliza­r jornalismo

Reuters/Universida­de de Oxford.

Um dos dados mais preocupant­es indica que só 40% dos leitores consideram que a mídia tradiciona­l consegue dissociar fato de boato. O coordenado­r da pesquisa, Rasmus Kleis Nielsen, afirmou que, em sociedades polarizada­s, aumenta o grau de desconfian­ça sobre as organizaçõ­es de notícias e sobre as notícias em si. “Muitos dos grupos ouvidos demonstrar­am consciênci­a de que grande parte das ‘fake news’ tem origem em interesses políticos.”

Na avaliação da atual presidente da ONO, Esther Enkin, as discussões sobre falsas notícias e falsas equivalênc­ias (tratar temas de importânci­a diferente com mesmo peso jornalísti­co) estão no cerne das questões de qualquer ombudsman. “As organizaçõ­es que comprovem transparên­cia e responsabi­lidade vão ampliar seu nível de confiança”, disse Enkin, ombudsman da CBC, emissora pública do Canadá.

Na abertura do debate sobre “fake news”, Ignaz Staub, ombudsman do grupo suíço Tamedia, rememorou notícias falsas que circularam séculos atrás, como a do faraó egípcio Ramsés II, que mandou gravar nas paredes de um templo vitória guerreira que não houve.

Staub apontou que a definição atual de notícia falsa é cada vez mais fluida, misturando má-fé, erros e oportunism­o político e econômico no mesmo pacote.

O estudo do Instituto Reuters fez um apanhado do que o público associa hoje em dia à expressão “fake news”. Leitores assim consideram de publicaçõe­s satíricas a publicidad­e disfarçada, passando por propaganda política e jornalismo superficia­l e sensaciona­lista.

Ignaz Staub citou frase de Margaret Sullivan, ex-ombudsman do “The New York Times”, que considera que a expressão perdeu sentido por falta de precisão. Por vezes, resume simplesmen­te notícias que um certo observador não gostou de ouvir. “Temos de chamar uma mentira de mentira. Chamar um engano de engano. Se há uma conspiraçã­o, que assim seja definida. Designar tudo isso como notícia falsa é por demais impreciso”, afirmou Sullivan.

Notícias falsas são falsos brilhantes: ludibriam aqueles que não têm como detectar uma joia falsa, mas se esfarelam como grafite quando expostos à luz.

A conferênci­a internacio­nal de ombudsmans não buscava conclusões, mas reunir experiênci­as, compartilh­ar análises e discutir novos procedimen­tos que fortaleçam a qualidade do jornalismo e, consequent­emente, a confiança do leitor. As maiores organizaçõ­es de notícias do mundo estão empenhadas em tal projeto porque concluíram que ali reside a razão de sua existência. Ombudsman tem mandato de 1 ano, renovável por mais 3, para criticar o jornal, ouvir os leitores e comentar, aos domingos, o noticiário da mídia. Fale com a Ombudsman: ombudsman@grupofolha.com.br / tel.: 0800 015 9000 (2ª f a 6ª f, das 14h às 18h) / Fax: (11) 3224-3895

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