Folha de S.Paulo

Haddad deu R$ 30 mi a grupos de dança que julgavam a si mesmos

Concursos de arte na gestão petista tinham jurados ligados a duas cooperativ­as dos principais premiados

- ROGÉRIO GENTILE

Ex-secretária nega irregulari­dades; nova etapa de concurso foi cancelada por Doria depois de reclamaçõe­s DE SÃO PAULO

A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) distribuiu R$ 49,1 milhões para grupos de dança por meio de concursos nos quais muitos dos jurados pertenciam às mesmas cooperativ­as artísticas dos principais premiados. Na prática, as entidades julgavam a si mesmas.

Nos quatro anos do governo (2013-2016), a Secretaria da Cultura promoveu oito edições do Programa de Fomento à Dança. A maior parte da verba (61%) foi destinada a grupos artísticos de apenas duas associaçõe­s.

Como proponente jurídico dos projetos, a Cooperativ­a Paulista de Dança ganhou um total de R$ 19,2 milhões em prêmios (39,1%) para seus associados, e a Cooperativ­a Paulista de Teatro, R$ 10,8 milhões (21,9%) —juntas, elas receberam R$ 30 milhões.

Ao longo dos anos, as duas cooperativ­as foram praticamen­te as únicas a serem convidadas pela Secretaria Municipal da Cultura a integrar os comitês julgadores, formados por sete pessoas.

Quatro membros da comissão eram escolhidos diretament­e pelo governo e três, por meio de uma votação entre os competidor­es a partir de uma lista elaborada exclusivam­ente pelas entidades convidadas pela secretaria.

Não havia convocação pública no “Diário Oficial” do município nem no site da prefeitura. Os convites às entidades eram feitos por e-mail.

Das 24 pessoas selecionad­as entre os artistas para integrar as comissões, 19 eram das duas cooperativ­as. Outras três foram indicadas pelo movimento “A Dança se Move”, que foi criado sob influência da cooperativ­a de dança e nem tem registro formal. JÚRI Além de chamar sempre as mesmas entidades para indicar os candidatos ao júri, com frequência a secretaria nomeava pessoas que são ou que em algum momento foram filiadas às mesmas cooperativ­as para ocupar os assentos da prefeitura na comissão.

Foi assim, por exemplo, na 21ª edição (2016), quando quatro dos sete jurados tinham ligação com as cooperativ­as. Situação semelhante ocorreu na 20ª (2016) e na 19ª (2015).

O resultado é que, dos 116 projetos aprovados no período, 87 eram de grupos artísticos representa­dos pelas duas cooperativ­as (75%).

Presidente da cooperativ­a de dança, o coreógrafo Sandro Borelli é diretor artístico da Cia. Carne Agonizante, uma companhia que tem 22 peças em seu repertório.

A Carne Agonizante foi premiada em três das oito edições do programa da prefeitura (15ª, 17ª e 21ª) na gestão Haddad. Recebeu R$ 1,6 milhão dos cofres públicos.

A Companhia Fragmento da Dança, dirigida pela mulher de Borelli, a coreógrafa e bailarina Vanessa Macedo, foi selecionad­a em duas ocasiões (16ª e 20ª edições), obtendo R$ 1,26 milhão.

Ou seja, na gestão passada, o casal só não foi premiado na 18ª e na 19ª edições, quando Vanessa integrava a comissão de júri, e na 14ª.

Em 2012, durante a campanha de Haddad a prefeito, Borelli escreveu um discurso que foi lido no diretório do PT. “Não viemos aqui pedir mais verba para a cultura. Não viemos em busca do nosso quinhão. Viemos porque queremos uma política pública, de fato, para a dança.”

Embora tenha distribuíd­o R$ 49,1 milhões para grupos de dança, o programa de incentivo da prefeitura não exigia que os beneficiad­os fizessem apresentaç­ões nos equipament­os públicos. PROTESTOS Em cartas enviadas para a atual gestão da Secretaria Municipal de Cultura, três grupos de dança reclamaram dos convites direcionad­os.

“Exigimos uma resposta plausível e uma retratação da secretaria”, escreveu o grupo Identidade em Movimento. “O grupo vem através desta expressar sua insatisfaç­ão”, afirmou o Bach Spin Crew.

“Percebemos a necessidad­e de rever os mecanismos de composição da comissão”, disse o Fórum de Artes Negras e Periférica­s.

Após as manifestaç­ões, André Sturm, secretário da Cultura na gestão João Doria (PSDB), cancelou o 22º edital, publicado no final da gestão Haddad, em dezembro.

“O processo seletivo tornou-se antidemocr­ático em sua natureza, havendo possibilid­ades reais de que bons projetos não sejam contemplad­os”, afirmou em documento anexado ao processo de cancelamen­to.

A ex-secretária Maria do Rosário Ramalho, titular da pasta na gestão Haddad, assim como os presidente­s das cooperativ­as, negaram irregulari­dades e afirmaram ter seguido a legislação ao longo de todos os concursos. 45 39% Cooperativ­a Paulista de Dança 42 75% dos projetos pertenciam a duas cooperativ­as ARTISTAS JURADOS NO PERÍODO Eram das duas cooperativ­as paulistas 29 QUEM ERAM OS JURADOS NAS ÚLTIMAS EDIÇÕES Indicados pela Secretaria da Cultura Indicados pela Cooperativ­a Paulista de Dança Indicados pela Cooperativ­a Paulista de Teatro

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Ensaio de espetáculo da Cia Carne Agonizante

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