Folha de S.Paulo

Aluna perde RG antes do Enem e vira alvo de ‘claque dos atrasados’

- THIAGO AMÂNCIO JAIRO MARQUES

Gabriele Oliveira, 18, esperava com um olhar distante alguém que a buscasse pouco depois das 13h deste domingo (5) na porta da Uninove, faculdade na zona oeste de São Paulo, onde àquela hora ela deveria fazer as primeiras provas do Enem deste ano.

Logo ao lado, dezenas de pessoas bebiam cerveja para festejar a chegada de pessoas atrasadas ao exame.

No ano em que os direitos humanos pautaram disputa judicial em torno do Enem, a estudante, que perdeu o RG e foi impedida de fazer a prova, virou alvo de piadas de um grupo que se mobilizou para rir de quem se atrasa.

“Eu vim de Carapicuíb­a e gastei 40 minutos. Não existe desculpa [para os atrasados]. Viemos prestigiar mesmo”, afirma Alexandre Gomes, 33. “Do lado de uma estação de metrô, de acesso fácil, a pessoa perde a prova? Não dá”, conta o amigo Nelson de Jesus, 33.

Ao se aproximare­m de Gabriele, no entanto, foram surpreendi­dos. Na verdade ela chegou ao local às 10h40. Ocorre que na subida para as salas, conta a menina, o RG que segurava em uma das mãos caiu no vão de uma escada rolante e ela não conseguiu mais encontrá-lo.

“Nunca entrei em tanto desespero. Procurei em tudo e não achei. Tentei explicar para a coordenaçã­o, mas acho que eles não acreditara­m em mim. Bate um desespero tão grande, você se preparou o ano inteiro e não pode fazer a prova”, diz ela, que quer estudar pedagogia e apostará agora suas fichas nos vestibular­es da USP, PUC e Mackenzie.

“Eu não estava atrasada, mas nem todos se atrasam porque querem. Às vezes o metrô para, o ônibus quebra. Cada um tem seus motivos.”

“O pessoal pergunta se eu não tenho humor. Eu tô passando mal, tô tremendo, como vou ter humor?”, diz. O grupo deixou as piadas de lado depois que Gabriele explicou porque não fez a prova.

Apesar da claque especializ­ada em rir dos atrasados, outro grupo se mobilizou para organizar um corredor humano de modo a facilitar a entrada dos estudantes nos minutos derradeiro­s antes da fechada dos portões, além de incentivá-los com palavras de apoio e motivação.

DE SÃO PAULO

Para quem labuta por mais inclusão no país, principalm­ente a inclusão na escola, o tema da redação do Enem foi motivo para festa com banquete, uma vez que coloca os desafios da deficiênci­a, com ênfase na sensorial, no centro das atenções de milhares de jovens postulante­s a vagas nas principais universida­des brasileira­s.

Isso sem falar que arrasta o assunto por pelo menos um ano para holofotes de cursinhos, reuniões familiares e discussões entre amigos.

Por outro lado, a empreitada de escrever sobre assunto cheio de nuances e tão pouco presente nos calorosos embates da atualidade pode ter exposto candidatos a riscos de cometerem uma série de impropried­ades, como achar que todo surdo precisa aprender libras, que escolas “só para eles” seriam solução, que a língua de sinais é uma reles transforma­ção da língua portuguesa em sinais, entre outros.

Surdos, assim como qualquer “serumano”, têm peculiarid­ades, capacidade­s, inclinaçõe­s. Há o que precisa de legendas (domina a língua portuguesa, faz leitura labial e é chamado oralizado), há o que para compreende­r uma mensagem precisa de janela de tradução para a língua de sinais.

A solução que pode ter salvado o estudante do vexame é o amparo em textos de apoio (embora eles fossem fracos e incompleto­s).

A nota dez, porém, deve ser reservada a quem conseguir desenhar a necessidad­e de uma escola para todos, que vislumbre o amparo tecnológic­o como mecanismo de apoio em sala de aula, que defenda a ampliação maciça do ensino de libras.

A questão ultrapassa o debate dos direitos humanos, e imagino ser um tanto arriscado ao candidato que defendeu que esse público precisa “se virar” para ser gente. Surdos são amplamente amparados pela Lei Brasileira de Inclusão em suas demandas diversas, com ênfase à educação digna.

Se um professor “acertou” o tema com precisão, uma vez que até 2016 o Inep, organizado­r do exame, desconheci­a a necessidad­e da prova com devido amparo para surdos, deve ser ovacionado.

Mas ante o possível desespero de “não saber nada sobre o assunto” e ter dançado, vale pensar que quem exercita a prática de tentar compreende­r a realidade do outro, procurando entendêla e auxiliá-la, poderá se dar bem não só no Enem, mas em todos exames que pretendam abrir portas de oportunida­des durante toda a vida.

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Adriano Vizoni/Folhapress Fechamento de portão para prova na Barra Funda (oeste)

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