Folha de S.Paulo

Sérgio Sant’Anna se volta ao memorialis­mo

Em ‘Anjo Noturno: Narrativas’, autor reúne nove textos de gêneros diversos, que vão da ficção às suas lembranças

- ÁLVARO COSTA E SILVA

Escritor classifica sua nova fase como ‘acerto de contas’, narrando de sua juventude à atuação política no golpe de 1964 FOLHA

“Tem hora que fico cansado da palavra escrita. Ela tem sido usada demais. Todo mundo quer ser romancista, ninguém quer ser leitor”, diz Sérgio Sant’Anna, que acaba de lançar “Anjo Noturno: Narrativas”, sua 20ª obra.

O curioso é que Sérgio tem publicado bastante: em 2014 saiu “O Homem-Mulher” e, no ano passado, “O Conto Zero e Outras Histórias”. Cada livro é melhor que o outro. Na verdade é difícil escolher um só, os três estão plenamente realizados. E apontam um novo caminho na trajetória do autor: o memorialis­mo verdade.

Alguns amigos até brincam, dizendo que, nesse ritmo, ele vai virar “o César Aira brasileiro”, referindo-se ao argentino tão prolífico que não se sabe ao certo quantos livros escreveu: está perto dos cem.

É uma circunstân­cia rara na trajetória do carioca, em atividade desde a década de 1960 e que jamais teve pressa: “Escrevo todos os dias, mas só um pouquinho. Vem uma ideia, vou rascunhand­o e paro. Pulo de um trabalho para outro. Para fazer um conto que me satisfaça, demora e demora”.

A novela “Talk Show”, um dos pontos altos do novo livro, seguiu esse esquema: “Um dia peguei aquele troço e vi que, se mexesse, podia funcionar”.

Nela, um autor para lá de autodeprec­iativo aceita participar de um programa brega de entrevista­s, conduzido ao vivo num teatro de revista pela não menos brega Edwina Sampaio. Quem teria sido o modelo da personagem? Sérgio não entrega; os leitores terão de descobrir. Ah, sim, pela tarefa inglória o escritor da ficção vai receber R$ 2.500.

Num recurso caro a Sérgio, a metalingua­gem, a figura do escritor na novela passa por um bloqueio criativo: “Eu não conseguia colocar uma palavra atrás da outra, porque era preciso usar o tempo ordenadame­nte. Mas o tempo era um movimento bem concreto que eu via no relógio, ansioso, arrastando-me com ele e deixando para trás aquilo que eu poderia ter feito e não fizera”.

Na vida real, é ao contrário. Ao domar o tempo da criação, Sérgio transforma em escritura questões íntimas que estavam sepultadas na memória.

É o caso de “A Mãe”, contada do ponto de vista ora do menino, ora do adulto, que aproveita a morte da mãe para revelar a vida de uma mulher religiosa e pudica que, como nos melhores melodramas, guardava um segredo.

“É tudo verdade. Minha mãe era uma pessoa complicada, e procurei destrincha­r a vida dela em busca de elementos para um texto bem pessoal. Não sei se o público vai gostar, mas para mim foi importante escrever.” ACERTO O escritor classifica sua fase recente como “um acerto de contas”. Segundo ele, esse poderia ser o título da trilogia que só hoje se deu conta de ter realizado,com “O HomemMulhe­r” e “O Conto Zero”.

“Fui recuperand­o tudo, a infância nas ruas do bairro de Botafogo, a juventude das farras em Belo Horizonte, a época de companheir­ismo com o pessoal que tentava fazer literatura e música. Até mesmo minha tímida participaç­ão política no golpe de 1964.”

Em “Amigos”, outro texto de não ficção, narra-se como ele foi demitido da Petrobras por atuar no sindicato e processado pela ditadura.

“Achei importante dar meu depoimento. O capitão do Exército que me interrogou foi até educado. Mas era a época do Castelo Branco. Hoje há discussões sobre a ditadura em que eu noto que as pessoas não têm a menor noção do que se passou de fato. Tanto a turma que se diz de esquerda como a que se diz de direita.”

Em “Anjo Noturno”, como em boa parte de seus livros, retoma o diálogo entre literatura e artes plásticas: “Tenho fascinação por transforma­r o visual artístico em palavras”.

Em “Augusta”, história com ares de terror e mistério, um casal que acaba de se conhecer numa festinha faz sexo diante do retrato de uma mulher nua. A tela está perfurada a faca em cima do seio esquerdo. Em “Um Conto Límpido e Obscuro”, o narrador recebe a visita inesperada de uma exnamorada artista plástica.

“A confusão do Santander me impression­ou”, diz Sérgio, sobre o cancelamen­to da mostra “Queermuseu” depois de protestos de grupos religiosos e do MBL (Movimento Brasil Livre). “É uma nova direita que está pintando, perigosa, pois a gente não sabe até aonde pode ir. Não imagino esses caras do MBL lendo um livro meu. Mas, se lessem, também iriam chiar.” TEATRO Na novela “Uma Peça Sem Nome”, ele volta ao formato teatro-ficção, que já utilizara em “Um Romance de Geração” (1980): “Ouso dizer que é um texto de vanguarda. Acho até que pode encontrar maior resistênci­a do leitor. Mas era fundamenta­l que fosse escrito dessa maneira”.

“A princípio pensei que poderia ser usado como peça de teatro mesmo. Mas depois vi que era melhor botar em livro, pois assim você faz o que quer. Sempre que mexi com teatro, adaptando, o diretor me traiu completame­nte.”

Depois de “Anjo Noturno”, Sérgio se diz “seco, no zero”, sem ideias para novos trabalhos. Os 76 anos, completos em outubro, o assustam: “Tenho medo da decrepitud­e”, afirma ele, que faz fisioterap­ia e caminhadas diárias no bairro de Laranjeira­s. A novidade é que pretende voltar ao Carnaval do Rio: “Quero ver o povo reagir ao prefeito que quer impedir os blocos”. AUTOR Sérgio Sant’Anna EDITORA Companhia das Letras QUANTO R$ 39,90 (184 págs.); R$ 27,90 (e-book)

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Daniel Marenco - 4.set.2014/Folhapress Sérgio Sant’Anna, autor de ‘Anjo Noturno’, em sua casa, no bairro de Laranjeira­s, no Rio

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