Folha de S.Paulo

Eu acho que fez. O artefato nuclear é arma de destruição

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Folha - Como o senhor se aproximou da empreiteir­a Andrade Gutierrez?

Almirante Othon - Em 1994, quando fui para a reserva, a primeira coisa que fiz foi prestar um concurso para o Instituto de Pesquisas Nucleares da Cnen (Comissão Nacional de Energia Nuclear).

Havia duas vagas para pesquisado­r. Concorri com 16 doutores e tirei primeiro lugar.

Mas nós estávamos em 1994, numa fase de muita globalizaç­ão. E eu não fui chamado. A minha cara é nacionalis­ta. E eu sou mesmo.

Como não deu certo, montei uma empresa de consultori­a, a Aratec. No início de 2004, um camarada da Andrade Gutierrez, o senhor Marcos Teixeira, apareceu lá. E o que ele queria?

Ele disse: “Nós [construtor­a] temos um contrato de 1982 [para as obras civis da usina nuclear de Angra 3]. Mal começamos a mexer na fundação e ele foi interrompi­do”.

Eles achavam que eu poderia ajudar [na retomada das obras], por ter influência militar. Eu disse “não tenho mais, saí [da Marinha] faz tempo”. Aí veio a ideia de fazer um estudo para eles.

Eu não estava no governo e nem imaginava que ia voltar [Othon foi convidado para presidir a Eletronucl­ear um ano depois, em 2005]. O Ministério Público Federal considerou que o estudo assinado pelo senhor para a Andrade Gutierrez era simplório e entendeu que ele é fictício.

É um desconheci­mento total ou uma vontade de não querer reconhecer [a importânci­a do trabalho]. São anos de pensamento sobre o Brasil.

O que ocorreu no país, e sobre o que falava no meu estudo? O consumo de energia cresceu e o estoque de água das hidrelétri­cas estacionou na década de 80. Antes disso, o Brasil poderia passar por vários anos “secos” porque tinha estoque de água. Mas isso mudou e veio o apagão.

O Brasil agora precisa de energia térmica de base.

Termelétri­cas têm que ser [movidas a] carvão ou [energia] nuclear. E nuclear é melhor para nós porque temos reservas [de urânio] correspond­entes a 50% do pré-sal.

Nós temos que aproveitar o que a natureza nos dá.

Ah, se eu tivesse mais [usinas] nucleares. O custo do investimen­to é maior mas o do combustíve­l é menor [do que o de outras alternativ­as].

No caso da hidrelétri­ca, o custo [do combustíve­l, a água] é quase zero. E no caso da nuclear, é pequeno.

Se eu tiver a energia nuclear, eu economizo água e não chego nessa situação [de apagão]. A energia nuclear não compete com a hidrelétri­ca. Ela complement­a. Era isso o que o estudo mostrava. Depois o senhor foi para o governo e a obra de Angra 3 foi retomada.

Em julho [de 2005], eu soube que tinha uma lista [no governo Lula] para escolher o presidente da Eletronucl­ear. Eu não queria.

Mas aí eu fiz a grande bobagem da minha vida. Fui convidado. Bateu a vaidade e eu aceitei. Em outubro de 2005, assumi o cargo. E como passou a receber dinheiro da empreiteir­a?

Tudo o que eu fazia na época [em que prestava consultori­a] era na base do sucesso.

E coincidiu que fui para o governo e houve a decisão [de retomar Angra 3].

Quem decidiu foi o Conselho Nacional de Política Energética, do qual eu não fazia parte. Como presidente, eu apenas executei as diretrizes.

Mas passei a fazer jus [à remuneraçã­o] do trabalho [estudo para a Andrade] que eu fiz antes. Quanto passou a receber?

Eu cobrei R$ 3 milhões, em valores de dezembro de 2004 [a Polícia Federal diz que o almirante recebeu R$ 4,5 milhões em valores atualizado­s].

Comecei a receber depois que houve a decisão da retomada das obras.

Como era um troço completame­nte diferente, eles falaram “vamos pagar através de outras empresas”. Aí virou outro crime.

Se fosse hoje, eu exigiria deles [Andrade] um contrato de confissão de dívida para que me pagassem só depois que eu saísse. Eu não receberia no cargo.

Eu tinha direito, foi um trabalho que eu fiz antes. Não era imoral nem ilegal. Apenas com a experiênci­a de hoje eu teria feito diferente. O Ministério Público Federal e a Justiça considerar­am que era propina.

Não era propina, não foi mesmo. Eu achava que tinha direito de receber. Agora, tive o cuidado de não tomar nenhuma decisão [que beneficias­se a empreiteir­a], não tem nenhum ato de ofício assinado por mim.

Tivemos [ele e a Andrade] inclusive um atrito inicial, porque eu exigi que o TCU aprovasse os detalhes do aditivo [para o pagamento do serviço nas obras de Angra 3].

Eles ficaram irritadíss­imos. Fui uma decepção para eles. Houve outras divergênci­as, chegaram a parar as obras. Oras, se eu tivesse ligação com eles, isso teria ocorrido? Delatores da empresa afirmaram que o senhor, na verdade, cobrava percentual sobre os contratos de Angra 3.

A Andrade já tinha um ressentime­nto em relação a mim. E delação premiada é um processo muito danado. O cara acha que agrada [os investigad­ores] e senta a pua. Ele não tem compromiss­o. O senhor diz que sua prisão interessa ao sistema internacio­nal. Que evidência tem disso?

Como começou tudo isso? Num depoimento que o presidente de uma empreiteir­a fazia sobre um contrato com a Petrobras.

Ele mencionou que ouviu dizer algo sobre o presidente da Eletronucl­ear estar de acordo com um cartel.

Isso serviu de pretexto para os camaradas vasculhare­m a minha vida desde garoto. Havia um direcionam­ento. Mas haveria um comando externo nas investigaç­ões?

Não comando, mas influência forte, ideológica. Não posso provar mas tenho um sentimento muito forte. Houve interesse internacio­nal. E por que haveria interesse internacio­nal em sua prisão?

Porque tudo o que eu fiz [na área nuclear] desagradou. Qual o maior noticiário que tem hoje? A Coreia do Norte e suas atividades nucleares. A parte nuclear gera rejeição na comunidade internacio­nal.

E o Brasil ser potência nuclear desagrada. Disso eu não tenho a menor dúvida. Há setores que acreditam que o Brasil deveria desenvolve­r a bomba atômica. O país fez bem em abrir mão dela? de massa e inibidora de concentraç­ão de força. Mas, no nosso caso, se tivéssemos a bomba, desbalance­aríamos a América Latina, suscitando apreensões.

E a última coisa que a gente precisa na América Latina é de um embate. O país, no entanto, não abriu mão da tecnologia. Se necessário, em quanto tempo faríamos uma bomba?

Em uns quatro meses. Com a tecnologia de enriquecim­ento que nós usamos, podemos fazer a bomba com o plutônio, como a de Nagasaki, ou com o urânio, que foi a de Hiroshima. Temos os dois porque quem tem urânio enriquecid­o pode ter o plutônio também. Voltando às investigaç­ões, o senhor foi acusado de contribuir para a desvaloriz­ação da Eletronucl­ear.

Quando assumi, ela era chamada de vaga-lume. Em poucos anos, passou a figurar entre as centrais de melhor desempenho do mundo.

As ações se valorizara­m. Como então eu contribuí para desvaloriz­ar as ações? Nada disso foi levado em conta no meu julgamento.

O meu passado serviu como agravante. Eu peguei cinco anos de cadeia a mais porque, se eu tinha aquele passado, eu tinha que ter um comportame­nto [exemplar]. É a primeira vez que antecedent­e virou agravante. Vida pregressa ilibada virou agravante.

Tá lá, escrito [na sentença]. É só ler. Eu li. Me deu uma revolta tão grande...[levanta da mesa, chora]. dois caras [policiais] entraram berrando no meu apartament­o. Parti para cima. Fui treinado para isso a vida toda.

Disseram que eu estava armado. Não é verdade. Eu tenho arma, mas ela fica trancada em uma gaveta.

Mas eu não resisti. Se tivesse resistido, eu morria, mas pode ter certeza que um deles ia junto. Fiz treinament­o na polícia de SP quando estava no programa [nuclear] secreto. Dava 200 tiros por semana. E para onde levaram o senhor?

Primeiro para Curitiba e depois para o Rio. Cheguei a ser preso em Bangu.

Lá eu fiquei dois dias com [o bicheiro] Carlinhos Cachoeira [ri]. A gente conversava, via televisão, era ele, o [empresário Fernando] Cavendish, seis pessoas no total.

Depois fui transferid­o para a base de fuzileiros navais do Rio de Janeiro, onde fiquei um ano e pedrada. O senhor ficou então sozinho?

Isolamento absoluto. De manhã, eu fazia 25 minutos de ginástica na cela. Depois andava 5 quilômetro­s, durante a hora de banho de sol a que eu tinha direito.

Um oficial me escoltava. Tirando esse momento, não falava com ninguém. Aí me ocorreu escrever um livro, à mão, com caneta e papel. Já terminei e pretendo lançá-lo.

Eu comia comida de praça com colher e garfo de plástico. É fogo, né? Aprendi a comer com a mão. Virei indiano. E comecei a ver novelas. E como é estar de novo em liberdade?

Depois de passar por tudo isso, a gente fica com uma certa inseguranç­a, sabe? Sei lá, esperando alguma coisa inesperada que não sabe o que é [chora]. Eu estou me livrando dela agora.

E também a gente começa a ver o fim da vida chegando, né? [emocionado]. A vida toda eu trabalhei construind­o alguma coisa. E disso eu sinto falta. Em todo lugar eu estive na frente de combate.

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