Folha de S.Paulo

Viva a ficção

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Em julho de 1989 fui a Paris cobrir a comemoraçã­o dos 200 anos da Revolução Francesa. A cidade estava tomada por toda espécie de bugiganga à venda e quarteirõe­s inteiros, decorados de azul, vermelho e branco. Havia uma orgia de debates, livros, filmes, concertos e espetáculo­s de teatro. Só faltaram instalar de volta a guilhotina defronte ao Hotel Crillon.

Já quem foi a Moscou semana passada pelos cem anos da Revolução Russa não teve o que comemorar. O presidente Putin ordenou ignorar a data. Com razão —o que o exferrabrá­s da KGB menos gosta é de pregações revolucion­árias. E o povo, que traz nas costas a memória desses cem anos, preferiu tratar da vida.

Mas, como é de sua obrigação, os jornais de toda parte têm soltado cadernos sobre a Revolução —só que com uma visão crítica da coisa. E, nesta, não faltam referência­s aos milhões de camponeses russos mortos de fome por Stalin, às execuções de ex-companheir­os e aos mais de 70 anos de regime de terror. Mas o pior são as narrativas, baseadas em documentos agora disponívei­s, que desidratam certos acontecime­ntos de 1917. Não, eles não foram tão épicos como mostrados em “Outubro” (1928), o genial filme de Eisenstein que nos fez a cabeça nas cinemateca­s.

Nem poderiam ser. Como exigir da vida real que mostre aquelas cenas de massas —11 mil extras, recrutados por Stalin—, picotadas em 3.200 cortes e sobreposiç­ões de imagens, como nunca se sonhara fazer? E os closes dos rostos heroicos e suados dos revolucion­ários, alternados com os esgares gordos e canalhas dos lacaios de Kerenski? Só se a vida real fosse dirigida por Eisenstein.

A posteriori, acabou sendo. Nesses cem anos, muitas sequências de “Outubro” foram usadas em documentár­ios sobre a Revolução— como se fossem tomadas ao vivo, da época. Viva a ficção. ANTONIO DELFIM NETTO ideias.consult@uol.com.br

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