Folha de S.Paulo

Arábia Saudita acusa Irã de ato de guerra

Em meio a expurgo para firmar poder, herdeiro do trono diz que lançamento de míssil pelo Iêmen é obra de Teerã

- IGOR GIELOW

Resta saber se príncipe quer se fortalecer em disputa interna ou se entraria de fato em conflito com rival

Em meio a um expurgo palaciano de grandes proporções, o príncipe herdeiro e ministro da Defesa da Arábia Saudita, Muhammad bin Salman, acusou o Irã de atuar no lançamento de um míssil por rebeldes iemenitas contra a capital do país, Riad.

A grande questão é saber se ele quer reforçar sua posição política interna ao falar grosso ou se iria às vias de fato com o maior rival por influência no mundo islâmico.

“O envolvimen­to do regime iraniano ao fornecer mísseis a suas milícias houthi é considerad­o agressão militar direta. Um ato de guerra”, disse MBS, como o príncipe é conhecido por suas iniciais, em telefonema ao chanceler britânico, Boris Johnson.

O disparo ocorreu no sábado (4) e foi intercepta­do. Seria um episódio pontual no conflito que desde 2015 opõe os sauditas aos rebeldes da minoria xiita houthi, apoiados por Teerã, não fosse esta coletânea de eventos recentes.

1 - Donald Trump reverteu a política contrária a Riad de Barack Obama, prometendo rasgar o acordo nuclear que reforçou a influência do Irã ao livrar o país de sanções.

Os EUA amealharam US$ 110 bilhões em contratos militares e ganharam a possibilid­ade de ver a maior petroleira do mundo, a estatal saudita Aramco, abrir seu capital na Bolsa de Nova York.

2 - Riad aproximou-se de Moscou, aliada do Irã e fiadora do regime de Bashar al-Assad na Síria, odiado pelos sauditas. Russos e sauditas são os líderes na produção mundial de petróleo.

3 - MBS, 32, tomou o protagonis­mo do pai, o rei Salman, 81, no trono desde 2015. Neste ano, foi anunciado como herdeiro do trono. Assumiu uma agenda reformista, com acenos internos (mulheres poderão dirigir) e externos (criação de uma “cidade-modelo capitalist­a” high-tech de US$ 500 bilhões chamada Neom e a abertura da Aramco).

4 - Mais importante, no sábado, MBS iniciou um expurgo na família real saudita, que conta com 15 mil príncipes e princesas (talvez 2.000 com poder de fato) para uma população de 33 milhões.

Mandou prender 11 deles, inclusive o chefe da Guarda Nacional, instituiçã­o que tem status igual ao do Exército. Cerca de 500 pessoas foram detidas, segundo relatos.

5 - Ao mesmo tempo, o premiê libanês, Saad Hariri, surgiu em Riad e anunciou que deixaria o cargo devido à influência iraniana no seu país. Disse temer acabar como o pai, Rafiq, morto em 2005.

O Hizbullah, milícia e partido político xiita, é a mais eficaz força militar do país —luta há anos contra Israel, que vem trabalhand­o em conjunto com Riad, e atua na Síria.

Como se vê, o sábado concentrou três desses eventos centrais: o expurgo, a renúncia de Hariri e o míssil.

Tudo indica que o último foi uma desculpa, até porque a ação saudita já matou 9.000 pessoas e não removeu do poder sobre boa parte do Iêmen os rebeldes que derrubaram o governo pró-Riad, reconhecid­o no exterior.

O chanceler iraniano, Javad Zarif, respondeu às acusações ao estilo Trump, no Twitter. Segundo ele, a Arábia Saudita “bombardeia o Iêmen, espalha cólera e fome, mas claro que culpa o Irã”. Já o americano foi à rede para declarar apoio a MBS.

A questão humanitári­a tende a piorar com o anúncio de que Riad fechará acessos ao Iêmen. Há 900 mil infectados por cólera, e 60% dos 17 milhões de habitantes precisam de ajuda para comer.

A rixa entre Irã e Arábia Saudita é geopolític­a, mas também religiosa. O reino é o berço do islã e centro de sua facção majoritári­a, o sunismo. Já a teocracia persa, além de grande produtora de petróleo, é o ponto focal do xiismo, ramo rival e minoritári­o, mas maioria em locais como o Iraque.

A opacidade do regime absolutist­a saudita dificulta a avaliação do que parece ser a consolidaç­ão do ramo de Salman no poder.

Diferentem­ente de outras monarquias, na Arábia Saudita os herdeiros podem sair de várias linhagens —todas próximas, dada a poligamia ainda vigente e exacerbada nos anos iniciais do reino.

Salman, por exemplo, era meio-irmão do antecessor. A escolha de MBS como herdeiro rompeu a tradição de busca de consenso entre ramos tribais rivais, uma acomodação que é a própria base da casa real de Saud. IÊMEN Vive uma crise humanitári­a desde 2015, quando estourou o conflito entre o governo de Abdrabbuh Hadi e a milícia houthi, aliada do ex-ditador Saleh, que renunciou em 2011. Acuado, Hadi fugiu para a Arábia Saudita e voltou no mesmo ano. Seu governo não controla todo o território do Iêmen

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