Folha de S.Paulo

No país das Luislindas

- ALEXANDRE SCHWARTSMA­N COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Nizan Guanaes; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Nelson Barbosa; sábado: Marcos Sawaya Jank; domingo: Samuel Pessôa

O ARTIGO 37, inciso XI, da Constituiç­ão Federal estabelece um teto salarial para o funcionali­smo: “O subsídio mensal, em espécie, dos ministros do Supremo Tribunal Federal”. Apesar disso, a ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, foi manchete de vários jornais em razão de seu requerimen­to à Casa Civil, pedindo que fosse somado à sua aposentado­ria como desembarga­dora (R$ 30,5 mil/mês) também o salário integral de ministra (R$ 30,9 mil/ mês), o que traria seu ganho mensal para R$ 61,4 mil/mês, ultrapassa­ndo, em muito, os vencimento­s dos ministros do STF (R$ 33,7 mil/mês).

O “argumento” da ministra (entre outros de validade tão duvidosa quanto se “vestir com dignidade”) é que, devido ao teto, seu trabalho no ministério acrescenta “apenas” R$ 3.300/mês a seu rendimento, o que, no seu imparcial entendimen­to, configurar­ia trabalho análogo à escravidão, pois “todo o mundo sabe que quem trabalha sem receber é escravo”.

Noto somente que o rendimento adicional da ministra supera, com folga, a média de todos os trabalhado­res brasileiro­s, R$ 2.100/mês, e equivale à média da categoria com maior rendimento, o funcionali­smo.

Da mesma forma, não podemos deixar passar que ninguém a forçou a assumir um ministério; nesse sentido, sua decisão se equipara à de milhares de pessoas que se dedicam ao trabalho voluntário, sem receber nada, e que, certamente, não se consideram escravas.

Não é esse, porém, o ponto central da coluna, por mais escandalos­a que seja sua atitude. Em parte porque o fiasco de seu pedido —consequênc­ia da exposição à mídia— é a exceção, não a regra, em casos como esses.

Em agosto deste ano, houve também notícias sobre juízes cujos vencimento­s superavam o teto constituci­onal, por força de vantagens eventuais, indenizaçõ­es e demais pendurical­hos que, por entendimen­to, vejam só, da própria Justiça, não estariam sujeitos a limitação do teto. E, diga-se de passagem, uma breve busca pelo Google nota casos similares em 2016, 2015, 2014...

Mais relevante ainda é que tais casos ainda não correspond­em, nem de longe, à totalidade dos privilégio­s que tipicament­e são conferidos pelo setor público a grupos próximos ao poder.

A triste verdade é que a sociedade brasileira se tornou, e não de hoje, prisioneir­a de um círculo vicioso de caça à renda (a melhor tradução que vi para rent-seeking).

“Renda”, no sentido econômico do termo, representa a remuneraçã­o a algum insumo acima do valor que seria necessário para mantê-lo empregado nas condições atuais. Parece abstrato, mas os exemplos abundam: de licenças para táxis (um caso bastante atual, a propósito) à proteção contra concorrênc­ia internacio­nal, passando por subsídios e toda sorte de privilégio­s.

A caça à renda representa um imenso jogo de rouba-monte, com o agravante de que sua prática contribui para reduzir o tamanho do monte, pois recursos reais da sociedade são utilizados para esse fim, e não para a produção, além de tipicament­e favorecer setores menos produtivos. Embora possa enriquecer alguns de seus participan­tes, esse jogo empobrece as sociedades que o praticam.

Curioso mesmo, porém, é como economista­s autodenomi­nados “progressis­tas” se engajam facilmente na defesa da caça à renda. Eu já passei da idade de achar que se trata apenas de ingenuidad­e.

O Brasil virou prisioneir­o de um círculo vicioso de caça à renda, que representa um imenso jogo de rouba-monte

ALEXANDRE SCHWARTSMA­N,

www.schwartsma­n.com.br

@alexschwar­tsman aschwartsm­an@gmail.com

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