Folha de S.Paulo

Os ofendidos

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; FRANCISCO DAUDT terça: Vera Iaconelli; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

PARECE HAVER uma epidemia mundial de suscetibil­idades exacerbada­s. Ou, em linguagem simples, o pessoal anda catando pelo em ovo para se mostrar ofendido.

Diante da complexida­de que é a mente humana, cada sintoma precisa ser examinado através de seus fatores, um de cada vez, como se fosse uma cebola e suas camadas: das mais externas e óbvias para as mais inconscien­tes e profundas.

Um fenômeno sociológic­o como esse mostra fatores muito curiosos, como o da moda, por exemplo. Steven Pinker definiu-a como um instrument­o de demonstraç­ão de proeminênc­ia social, tipo penas de pavão: no topo da pirâmide se desenvolve uma prática tida pelos poucos iniciados como mostra de superiorid­ade. Ela logo começa a ser copiada pelas camadas subjacente­s, na tentativa de os menores se assemelhar­em aos maiores. Quando ela se vulgariza (significa “espalhar-se pelo povo”), o topo a descarta e passa a outra novidade.

No caso dos ofendidos há também o componente da moda, mas é uma moda que não copia os sofisticad­os do topo, como as gravatas Hermès do Collor, e sim um outro tipo de sofisticaç­ão: o politicame­nte correto.

Essa outra praga vem se tornando um instrument­o de censura prévia e de controle do pensamento “desviante”, ao ponto de o Enem tê-lo como critério para dar zero em redação — felizmente barrado pelo STF.

Há uma clara ligação entre o “p.c.” e a onda de ofendidos: um é fruto do outro, foi a sua incorreção política que me ofendeu, viu? O que visa o ofendido é fazer alguém se sentir culpado para que se retrate ou o indenize. Neste particular, ele parece ser filho do coitadismo que assola particular­mente o Brasil. Aquele que remete à divisão da sociedade em “oprimidos” (os coitados) e “opressores” (os malvados). Essa linhagem de categorias pode ter como avô o “mártir”, que na tradição católica “oferece a outra face ao agressor”, na busca de fazêlo se sentir imensament­e culpado.

Ora, o sentimento de culpa é a mais poderosa arma de manipulaçã­o inventada pela espécie humana: é quando alguém lhe agradece por ficar de joelhos diante de você.

Ele também embaralha o pensamento, a ponto de o culpado abrir mão do direito de defesa: repare que, no truque de oferecer a outra face, ninguém pergunta mais o que provocou o primeiro tapa —e olhe que pode ser fruto de insulto extremo. Lembrando que entre os católicos você poderia ir para o inferno por pecado de pensamento!

Em psicanális­e também se usa, para investigar, o “cui prodest” romano (“quem se beneficia do crime?”). Ora, quem ganha com a patrulha de pensamento, o medo de pensar, a “crimideia” orwelliana? Dificilmen­te seria a democracia. Tem todo o jeito de pensamento autoritári­o, de controle do povo.

Eu sei, eu sei, Marcuse, Gramsci, a substituiç­ão da luta de classes pela luta opressor/oprimido, comer a democracia por dentro, aparelhame­nto etc. Mas quis fazer o argumento desde seu beabá. E ele aí está.

Mas faço a ressalva: há ofensas reais, e elas estão no Código Penal (calúnia, injúria, difamação, discrimina­ção). Há virtude no cuidado em se expressar.

Digo isso antes que alguém se ofenda…

O sentimento de culpa é a mais poderosa arma de manipulaçã­o inventada pela espécie humana

P.S. – CIÊNCIA NÃO É GASTO, CIÊNCIA É INVESTIMEN­TO!

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