Folha de S.Paulo

CRÍTICA Remontagem realça metamorfos­e do Oficina

Nova versão de ‘O Rei da Vela’ emprega expediente­s de interpreta­ção que seriam preteridos pelo grupo de Zé Celso

- PAULO BIO

FOLHA

Se comparada com a trajetória do Oficina nos últimos 20 anos, a remontagem de “O Rei da Vela” surpreende. A encenação da peça de Oswald de Andrade meio século após a montagem decisiva de 1967 torna presente a memória de quando o Teatro Oficina ainda não era o Teat(r)o Oficina.

Logo que Renato Borghi entra em cena, vemos um referencia­l de interpreta­ção ligado tanto ao gestual da comédia popular quanto à materialid­ade stanislavs­kiana.

O Abelardo de Borghi vai além da imagem prefixada do agiota burguês. O gesto social —a ênfase cafajeste com que segura o próprio sexo, por exemplo— se conecta à construção minuciosa das intenções da personagem.

São expediente­s de interpreta­ção modernos que foram decisivos nos primeiros anos do Oficina, mas logo deixados de lado. Porém, em 1967 e hoje, é o rigor nesta escolha de atuação que mantém viva a estrutura da peça.

Afinal, o texto é rico em imagens corrosivas sobre o país e suas elites, mas pouco teatral. Nos três atos, a peça fica mais estática e a palavra se sobrepõe à dinâmica. A interpreta­ção materialis­ta de Borghi mantém vivo o espetáculo mesmo quando tende à paralisia e ao falatório.

A encenação de Zé Celso busca desvelar a estrutura produtiva do espaço. Ele coloca contrarreg­ras atravessan­do a cena e até uma secretária-ponto no palco, soprando o texto. O trabalho processual de criação fica aparente.

Evoca-se, assim, o palco feito por Flávio Império em 1967 para o Oficina. Inspirado pelo pensamento de Bertolt Brecht, ele construiu um teatro desencanta­do, em concreto, com palco giratório e maquinaria à mostra para fomentar a reflexão do público.

O interesse pelo Brecht desmistifi­cador e anti-idealista rondava a montagem original. Daí vem o esforço analítico e dialético na decifração (ou espinafraç­ão) de um país moderno e arcaico. Como dizem os Abelardos: “Um caso de burguesia avançada [...] Num país medieval”.

Com a saída dos velhos integrante­s (como Borghi e Fernando Peixoto) e a centraliza­ção em torno de Zé Celso na década de 1970, as posições materialis­tas de Brecht foram duramente criticadas.

As intenções analíticas foram afinal suplantada­s pela defesa do encantamen­to dionisíaco em uma cena cada vez mais autorrefer­ente.

Boa parte do que dava força à peça foi descartado na trajetória subsequent­e. E, com o tempo, “O Rei da Vela” passou a ser lembrada como prenúncio do irreverent­e espírito antropofág­ico do Oficina.

Mas a remontagem, que tenta reconstitu­ir em pormenores o original, revela vestígios de tradição moderna que foi preterida no desenvolvi­mento do grupo. Talvez a intenção do Sesc tenha sido a de festejar um marco fundador do que é o Oficina hoje, mas o resultado é uma imagem do que o teatro não foi. QUANDO sáb., às 19h, dom., às 18h; até 19/11 ONDE Sesc Pinheiros; r. Paes Leme, 195, tel. 11 3095-9400 QUANTO R$ 15 a R$ 50; 16 anos AVALIAÇÃO muito bom

Renato Borghi (à frente) e Tulio Starling em cena

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Lenise Pinheiro/Folhapress

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