Folha de S.Paulo

Ilhas flutuantes preservam tradição milenar

Arquipélag­o artificial habitado pelos uros fica no Titicaca, lago navegável mais alto do mundo, a 3.800 metros de altitude

- ISABEL ROCHA

População fala língua quase extinta no resto do país, tem sistema político próprio e usa palha para quase tudo FOLHA,

O farfalhar da palha e o ronco dos motores de barcos que navegam ao longe são os únicos barulhos que se escutam em Uros Aruma Uro, uma das mais de 90 ilhas flutuantes que ocupam o lado peruano do lago Titicaca.

Tocadas por uma luz amarelada capaz de tornar qualquer “filtro-de-hipster-noinstagra­m” desinteres­sante, as ilhas têm atmosfera tranquila e acolhedora.

Mas, apesar do ar seco, das altas temperatur­as e do intenso azul das águas configurar­em um cenário perfeito para mergulhar, não é comum encontrar uma pessoa corajosa o suficiente para nadar nas águas sagradas do Titicaca —não por algum tipo de convenção ou respeito, mas sim porque, vindas das geleiras, elas não estão em temperatur­a tão convidativ­a assim.

Cercado pela cordilheir­a dos Andes, na fronteira do Peru com a Bolívia, o lago navegável mais alto do mundo é tão belo quanto grandioso: são 8.300 quilômetro­s quadrados localizado­s a mais de 3.800 metros de altitude.

No chamado lago Maior, ao norte da península Capachica, as águas são agitadas e podem chegar aos 274 metros de profundida­de.

Já ao sul da península, no lago Menor, a água é bastante calma e as regiões mais profundas não ultrapassa­m os 20 metros. Foi ali que, há centenas de anos, os uros se estabelece­ram. COSTUMES Descendent­es de um dos primeiros povos a habitar a região do Titicaca, os uros são popularmen­te conhecidos por viver sobre ilhas de palha que flutuam sobre o lago. Mas a verdade é que suas peculiarid­ades e tradições vão muito além disso.

Para lá das ilhas que recebem famílias, mochileiro­s e turistas, eles seguem se comunicand­o em aymará (idioma de seus antepassad­os praticamen­te extinto no restante do país); realizando oferendas à Cota Mama (a divindade da água); vestindo trajes cujas cores, estampas e ornamentos indicam seu estado civil; e saindo cedo para pescar e levar seus filhos a uma das três escolas primárias que flutuam sobre o Titicaca.

“Quando ficam mais velhas, as crianças têm que ir estudar em Puno [cidade costeira a cerca de 15 minutos de barco da região], pois não há escolas secundária­s ou faculdades aqui”, afirma Juan Lujano, presidente da Uros Aruma Uro —uma das poucas “ilhas-hotel” onde é possível pernoitar na região.

O sistema político da comunidade também é bastante particular. Por lá, cada ilha pertence a uma família e é presidida por seu patriarca — que deve se responsabi­lizar pela segurança, pela manutenção e pela organizaçã­o interna do microterri­tório.

Cada ilha pode abrigar até oito famílias e é composta, basicament­e, por “casas modernas” (que servem de moradia e têm tamanho para abrigar colchões e alguns objetos pessoais); “casas antigas” (em formato cilíndrico, semelhante­s a uma choupana, que funcionam como depósito); cozinha (pedras sobre as quais é possível acender o fogo sem compromete­r o solo de palha); e um mirante (estrutura mais elevada sobre a qual é possível ter vista panorâmica da região).

Perci Leonardo, presidente da ilha Suma Willjta, explica que esses mirantes, que hoje fazem a alegria dos turistas e não têm nenhuma função prática para os moradores, foram fundamenta­is para a comunicaçã­o entre as ilhas no passado.

“Antes de haver celular, era por meio deles que nós nos comunicáva­mos. Quando tínhamos algum problema subíamos no mirante para avisar aos demais presidente­s”, diz Leonardo.

Extasiados com as peculiarid­ades do cenário e munidos de celulares e de câmeras fotográfic­as, viajantes dos quatro cantos do mundo fazem fila para embarcar nas chalanas turísticas, que partem diariament­e do continente para visitar a comunidade flutuante de perto.

Isso não impede que os locais, descendent­es de um povo que já ocupava a região dos Andes muito antes do surgimento do Império Inca, se mantenham fiéis às suas rotinas e tradições milenares. TOTORA Às margens do lago é possível observar o que os locais chamam de totorales —neologismo criado para descrever os mais de 11 mil hectares onde a totora (espécie de junco típico da região) cresce abundantem­ente. Com brotos fibrosos e úmidos, a planta é rica em iodo e utilizada medicinalm­ente para abaixar a febre, aliviar queimadura­s de sol e até como alimento.

Como se não bastasse, é a partir dessa palha, também, que os uros constroem suas ilhas, suas casas, suas embarcaçõe­s e seus artesanato­s.

Após a extração, a planta é deixada ao sol durante cerca de três semanas até atingir um aspecto seco e amarelado para, finalmente, servir de matéria-prima das ilhas da comunidade. O processo, que vai da edificação do solo (por meio de um agrupament­o de blocos de raízes) até a construção das casas, pode levar anos e segue em contínua manutenção.

“O solo vai sendo comprimido naturalmen­te conforme caminhamos sobre ele e, por isso, temos que colocar uma nova camada de palha sobre o chão a cada 15 dias mais ou menos”, explica Juan Lujano. ‘MERCEDES-BENZ’ Coroadas por grandes cabeças de puma (um dos animais sagrados da trilogia inca) e movidas com a ajuda de longos bastões que tocam o fundo do lago, as embarcaçõe­s típicas também são construída­s a partir da totora.

Apesar de já não serem mais utilizadas para os deslocamen­tos diários dos uros (que hoje recorrem a barcos motorizado­s), elas fazem a alegria dos turistas e são motivo de orgulho dos locais.

“É a nossa MercedesBe­nz!”, brinca o presidente da ilha Suma Willjta. Segundo Leonardo, a construção desse tipo de embarcação leva cerca de três meses e a vida útil dela é de dois anos.

“Depois, devido ao contato com a água, a totora começa a se deteriorar”, afirma.

Aos poucos, com o cair da noite, o silêncio quebrado pelos turistas volta a tomar conta da região e as primeiras estrelas começam a despontar no horizonte —sem deixar nenhuma dúvida sobre o porquê de os incas considerar­em esse um lugar sagrado.

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Menina brinca em barco feito com totora, junco comum na ilha de Uros, no lago Titicaca

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