CRÍTICA Alegoria sobre viciados em livros é envolvente, mas exige do público
Bem dirigida e com jogo intertextual, ‘Dostoiévski-trip’ demanda domínio do autor russo em segunda parte
FOLHA
Para quem gosta de literatura, a proposta de “Dostoiévski-trip” prenuncia um deleite: viciados em livros encontram-se para alimentar a fissura com uma nova droga.
A sinopse deve ser lida literalmente: na peça de Vladímir Sorókin, são pílulas que transportam os usuários a autores clássicos como Thomas Mann (“Como meu fígado doeu depois dele”) e Tolstói (“Nem Simone de Beauvoir me deixou tão na merda como Tolstói”).
O leitor sorri em cumplicidade enquanto os personagens desfiam experiências à espera de uma nova droga. O vendedor chega com “O Idiota” em sua mala; é a intertextualidade com Dostoiévski a essência da peça de Sorókin.
Saciados, os personagens incorporam aqueles do romance e encenam o momento em que Nastácia Filípovna, em uma espécie de leilão de si mesma, confronta Gania Ivólguin, jogando ao fogo enorme quantia de dinheiro, enquanto o príncipe Mýchkin, herói do romance, reafirma o desejo de se casar com ela.
Sem contextualização ou apresentação de personagens, a cena envolve pelo embate emocional e, para os assíduos dos palcos paulistanos, pelo eco que faz da montagem de 2010 de “O Idiota Uma Novela Teatral”.
Cibele Forjaz dirigia lá parte do elenco afinado que conduz muito bem também aqui —Luah Guimarãez e Aury Porto revivem o príncipe e Nastácia. Belas e pontuais projeções de cenas antigas somam nova camada a essa relação entre os textos, ilustrando a convivência íntima dos artistas com o clássico.
Quanto dessa familiaridade, no entanto, é partilhada pelo público, mesmo aquele que de fato lê? Pois não se trata só de referências a personagens ou enredo, informações que a plateia absorve na montagem —o que de fato ocorre na primeira metade, em viagens cada vez mais eufóricas dos personagens.
A segunda metade da peça exige um conhecimento crítico de Dostoiévski que ultrapassa o contato do leitor diletante com o russo.
A cena em si não é o problema: os personagens passam a narrar histórias terríveis de infância, com violências e abusos, enquanto constroem para si ambientes que, ao final, resultam em uma instalação no palco.
O momento é pungente pelos depoimentos de sem-teto incorporados à montagem e, mais ainda, pelos personagens em potencial desse drama espalhados no centro vazio da cidade, à saída do teatro.
Mas a relação desse trecho com a primeira metade fica manca. A tradutora do texto, a professora Arlete Cavaliere, fornece comentários essenciais, no programa da peça, para uma leitura do espetáculo.
Por exemplo, sobre elementos da filosofia do autor russo: “a compreensão ou o encontro com a verdade se opera por meio da ‘queda’, do sofrimento e da exposição do lado mais sombrio da natureza humana”. Ainda assim, tal complexidade demanda tempo para ser absorvida.
O jogo da intertextualidade sai prejudicado, e por ser essencial para pensar a contemporaneidade, como propõe Sokórin, a compreensão do espetáculo fica em suspenso. QUANDO sex., sáb. e seg. às 20h; dom. às 19h, até 18/12 ONDE Centro Cultural Banco do Brasil, r. Álvares Penteado, 112, tel. (11) 3113-3651 QUANTO R$10aR$20 CLASSIFICAÇÃO 16 anos CLASSIFICAÇÃO bom