Folha de S.Paulo

Como combater fake news no Brasil?

- RONALDO LEMOS

NAS ÚLTIMAS semanas, vem sendo articulada a ideia de que o Comando de Comunicaçõ­es e Guerra Eletrônica do Exército tenha um papel de destaque no combate às notícias falsas na internet (“fake news”). Ainda há poucos detalhes sobre qual é exatamente o plano, e mais informaçõe­s ajudariam no debate público.

No entanto, com base no pouco que se sabe, atribuir uma preponderâ­ncia militar a esse tema parece ser decisão equivocada e ineficaz.

A internet é um fenômeno complexo, que desafia a capacidade do Estado de agir sozinho. A evidência disso é que as principais ameaças que se materializ­am na rede hoje são engendrada­s tanto por atores estatais como não estatais. Para combatê-las, é necessário um arranjo similar.

Basta ler os estudos do professor Jonathan Albright, meu colega na Universida­de Columbia, para ver como o debate sobre fake news é mais complexo do que o modo como vem sendo tratado.

Albright mostra que cada notícia falsa é apenas a ponta do iceberg de uma indústria global bilionária que se formou para disseminar propaganda de natureza inflamatór­ia.

Ele batizou essa indústria de “a máquina de micropropa­ganda”. Seu elemento fundamenta­l —pouco visível— é uma constelaçã­o de empresas desconheci­das, grandes e pequenas, que monitoram e vigiam os hábitos e preferênci­as políticas dos usuários, sem nenhuma consideraç­ão à privacidad­e ou a limites éticos. As notícias falsas e a máquina de micropropa­ganda são dois lados de uma mesma moeda. Tratar de apenas um deles não gera resultados.

Para lidar com esse desafio, é necessária uma resposta institucio­nal mais sofisticad­a. O primeiro passo é destravar a discussão sobre a lei de proteção de dados pessoais, que está pendente no Congresso. Essa lei deve permitir a inovação, ao mesmo tempo em que impõe obrigações de transparên­cia e coíbe abusos éticos.

Outro passo é a criação de um fórum multisseto­rial para tratar do tema, subordinad­o exclusivam­ente ao Tribunal Superior Eleitoral. Nesse fórum deve haver a presença de vários setores: comunidade acadêmica e científica, governo, Comitê Gestor da Internet, setor privado, sociedade civil e aí sim o Comando de Guerra Eletrônica do Exército. Assim torna-se possível construir uma resposta mais efetiva às fake news. O requisito para isso é coordenar esforços entre os vários setores de forma permanente e estruturan­te.

As fake news são uma espécie de spam. Qualquer tipo de spam destrói o valor da mídia em que circula. Basta lembrar o fim dos anos 1990, quando os serviços de e-mail foram inundados por propaganda e quase afundaram.

Estamos em um momento em que o desafio é maior. As fake news atuais degradam a esfera pública como um todo. São um problema não só para as redes sociais como para a mídia “tradiciona­l”, com quem competem por atenção e minam a credibilid­ade. É necessário o envolvimen­to de todos os setores da sociedade para tratar dessa questão. O TSE pode liderar esse processo.

O primeiro passo é destravar a discussão sobre a lei de proteção de dados pessoais, pendente no Congresso

RONALDO LEMOS

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