Folha de S.Paulo

Carta aos 18

- COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; ALESSANDRA OROFINO terça: Vera Iaconelli; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

Admitamos que criminaliz­ar o aborto venha, em vocês, de uma vontade sincera de proteção da vida

NA SEMANA passada, em comissão, vocês votaram pela constituci­onalidade de uma lei que proíbe o aborto em caso de estupro. E eu tentei entender a posição de vocês.

Porque conheço muita gente inteligent­e que tem dificuldad­es em admitir a possibilid­ade do aborto. Porque tem algo de muito bonito nesse encontro entre um espermatoz­oide e um óvulo, esse evento que sela o DNA de uma pessoa que virá —única, jamais passível de ser repetida, um potencial indivíduo dentre bilhões de possibilid­ades.

Eu entendo que essa potência, esse destino selado dentro do útero, emocione e gere a vontade sincera de proteção.

Mas existe uma distância longa entre aquilo que condenamos moralmente e o que deve ser criminaliz­ado. E essa possibilid­ade, essa vida por vir, para tornar-se vida, depende integralme­nte de outra pessoa, de outro corpo, e esse corpo pode não suportar doar-se, sem fim, desse jeito, nesse mundo que parece preocupar-se mais com os nãonascido­s do que com os nascidos.

Criminaliz­ar não significa condenar. Significa dizer que toda mulher que faz um aborto deveria ser presa. Por homicídio. E aí fica muito mais difícil entender a posição de vocês. Presa? Uma em cada cinco mulheres brasileira­s. Presa? Uma mãe de família que já tem 3 filhos para sustentar, mas um dia tem um acidente ou não pode dizer não ao seu marido. Presa? Uma adolescent­e, depois de ceder às muitas pressões da idade, que não sabe como criar uma criança. Presa?

Mas admitamos que vocês tenham razão. Admitamos que a criminaliz­ação venha, em vocês, de uma vontade sincera de proteger a vida e de implicar a força repressiva e punitiva do Estado nesse esforço, porque essa força é tudo o que vocês conhecem. Tem uma situação que certamente seria dolorosa pra vocês. Uma situação na qual essa vontade de proteger seria ainda importante, ainda coerente, mas nunca motivo de alegria: a situação de uma mulher, ou menina, que engravida como consequênc­ia de estupro.

Eu entenderia que vocês sentissem a obrigação de proteger o que afirmam ser vida mesmo nos casos em que a mulher tenha engravidad­o ao sofrer uma violência indizível. Eu compreendo a lógica que vocês poderiam ter usado para tomar essa decisão, ainda que discorde dela. Mas eu não consigo entender que ela seja acompanhad­a de alegria. E eu vi. Eu vi vocês, no Congresso, depois de votar pela constituci­onalidade da PEC 181, cantando, batendo palmas, com sorrisos no rosto e palavras de ordem. 18 homens felizes. Felizes ao imaginar uma menina de 16 anos, estuprada pelo pai, que faz um aborto por não suportar doar-se para o fruto dessa violência, e que vai presa. Estupro. Aborto. PRESA.

Vocês não estavam com o pesar, a formalidad­e e a dor de quem toma uma decisão difícil porque busca sinceramen­te coerência em meio a um mundo tão absurdamen­te injusto. Vocês estavam contentes.

Porque, pra vocês, nunca foi sobre vida. Nunca foi sobre o milagre. Foi sobre essa sede de poder que leva vocês a querer aparecer e angariar capital político em cima da dor dos outros. Do corpo dos outros. Simplifica­ndo complexida­des e constrange­ndo o país.

O sorriso de vocês é a face mais vil do ser humano. O prazer que vocês sentem não tem nada a ver com moralidade. É, antes, a prova de que são perversos, sórdidos e estúpidos. Suas mães, deputados, devem estar arrependid­as do esforço descomunal envolvido em colocar vocês no mundo.

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