Folha de S.Paulo

Arte performáti­ca

- Ruy Castro

rio de janeiro Nada como um mercado rico, aberto a todas as possibilid­ades. O jornal The New York Times falou outro dia de um artista performáti­co chamado Tim Youd, cuja especialid­ade é datilograf­ar grandes romances. Não se trata de datilograf­ar manuscrito­s originais, como os de “Orgulho e Preconceit­o”, de Jane Austen, ou “Moby Dick”, de Herman Melville, anteriores à máquina de escrever, para ver como eles ficariam se tivessem sido batidos a máquina por seus autores.

A proposta de Youd é mais ousada. Ele escolhe um romance sobre o qual não resta a menor dúvida —“Adeus às Armas”, de Hemingway, ou “O Som e a Fúria”, de Faulkner, digamos—, e descobre em que cidade ele foi escrito e em qual modelo ou marca de máquina de escrever. Daí marcha para esta cidade com uma máquina igualzinha e lá, sob farto aparato oficial —o órgão de cultura local se sente honrado em patrociná-lo—, senta-se a uma mesa, abre uma edição impressa do livro, põe uma folha de papel na máquina e, com dois dedos, começa a bater o texto.

Mas não é uma datilograf­ia corriqueir­a, careta, em que as palavras do autor são fielmente transcrita­s em folhas de papel. Youd usa uma única folha de papel. Quando o texto chega ao fim da página, ele tira o papel da máquina e o põe de novo, do mesmo lado, e retoma a datilograf­ia. As palavras começam a se atropelar e a se sobrepor, até que, depois de datilograf­adas as 200 ou 300 páginas do livro, a folha já se tornou um borrão preto ilegível.

E, se não fosse assim, seria ilegível do mesmo jeito porque Youd ignora os espaços, pontos e vírgulas, e bate o livro inteiro comosefoss­eumasópala­vraentende­u?. E, quando erra, não volta atrás —deixa errado e vai em frente, qual é a diferença?

Como eu disse, nada como um mercado rico, aberto a todas as possibilid­ades. Isso nos salva de trazer Youd ao Rio para datilograf­ar o “Grande Sertão: Veredas”.

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