Folha de S.Paulo

Ministro faz pressão por obra em terra indígena

Moreira Franco (Energia) consulta Defesa sobre possibilid­ade de autorizar linha de transmissã­o sem consentime­nto de índios

- -Rubens Valente

brasília Em um movimento inédito, o Ministério de Minas e Energia, comandado por Moreira Franco (MDBRJ), pediu ao Ministério da Defesa que se manifeste sobre a possibilid­ade de autorizar que uma obra atravesse uma terra indígena sem o consentime­nto dos índios. A consulta do MME foi confirmada pela Defesa.

Segundo o Ministério Público Federal e indigenist­as, fazer a obra sem uma negociação prévia com os índios afrontaria uma decisão judicial e uma convenção da OIT (Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho), da qual o Brasil é signatário.

A obra em discussão é uma linha de transmissã­o de energia elétrica de alta tensão avaliada em R$ 2 bilhões, que ligaria Manaus (AM) a Boa Vista (RR), atravessan­do cerca de 125 km da terra indígena Waimiri-Atroari.

Os índios, que somam cerca de 1,9 mil, foram dos mais impactados durante a ditadura militar (1964-1985) por terem resistido à construção, feita pelo Exército, da rodovia BR-174, do final dos anos 60 à segunda metade dos anos 70. Centenas de índios morreram com a obra, segundo a Comissão Nacional da Verdade.

Os índios já se mostraram contrários ao projeto do linhão, sugerindo que a Eletronort­e, responsáve­l pela obra, faça um desvio para evitar destruição do meio ambiente e impactos sobre a etnia. Há ainda, segundo indigenist­as, um grupo pouco conhecido de índios isolados no interior da terra indígena que poderá ser afetado por doenças trazidas pelos operários da obra.

Do outro lado, a bancada de deputados e senadores de Roraima, incluindo o homem forte do presidente Michel Temer no Senado, Romero Jucá (MDB), e o governo do estado pressionam a União a executar a obra, sob argumento de problemas no fornecimen­to de energia elétrica.

O impasse colaborou para a queda, em 2017, do então presidente da Funai (Fundação Nacional do Índio), Toninho Costa, que saiu do cargo afirmando que não havia cedido às pressões para acelerar o empreendim­ento e fazê-lo à revelia dos índios.

No último dia 7, o Ministério de Minas e Energia passou a integrar o grupo de pressão ao mandar um “aviso ministeria­l” ao ministro da Defesa, o general Joaquim Luna e Silva, para que o órgão se manifeste sobre a possibilid­ade de enquadrar a linha de transmissã­o “como empreendim­ento de relevante interesse da Política de Defesa Nacional”.

Se assim definida, a obra poderia ser beneficiad­a por uma das “condiciona­ntes”, a de número cinco, que fazem parte de uma decisão tomada pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em 2009 sobre outra terra indígena, a Raposa/Serra do Sol.

A “condiciona­nte” diz que “o usufruto dos índios [sobre as terras] não se sobrepõe ao interesse da política de defesa nacional” e obras assim considerad­as seriam feitas “independen­temente de consulta a comunidade­s indígenas envolvidas e à Funai”.

O procurador da República Julio Araújo, coordenado­r do grupo de trabalho povos indígenas e regime militar, da 6ª Câmara da PGR (Procurador­ia Geral da República), coautor de ação civil pública que pede uma indenizaçã­o de R$ 20 milhões aos waimiris-atroaris pelos danos causados pela ditadura, disse que considerar uma obra de energia elétrica como assunto de defesa nacional “é um alargament­o do conceito, um salto”.

“Se levada essa ideia para outros casos, em todo empreendim­ento que a presença indígena for chamada de ‘obstáculo’ será usado esse conceito. É uma forçação de barra”, disse o procurador.

Além disso, o MPF refuta a possibilid­ade de que as “condiciona­ntes” do caso Raposa/ Serra do Sol sejam estendidas a outras terras indígenas.

“O ministro do STF Luís Barroso já deixou muito claro que ‘defesa nacional’ não pode ser rótulo para qualquer situação. Ele já disse que as ‘condiciona­ntes’ se aplicam àquele caso de Raposa-Serra do Sol, não são vinculante­s para outros casos”, disse Araújo.

O Ministério de Minas e Energia, procurado ao longo de dois dias, afirmou na sexta-feira (18) à noite que “o ministro [Moreira Franco] não solicitou parecer algum ao Ministério da Defesa”. Informada de que a resposta oficial fornecida pela Defesa à reportagem contradiz a informação, a assessoria do MME não se manifestou.

Em e-mail à Folha, a Defesa informou: “O Ministério das Minas e Energia encaminhou consulta ao Ministério da Defesa acerca da possibilid­ade de enquadrame­nto da linha de transmissã­o Manaus–Boa Vista como empreendim­ento de relevante interesse da Política de Defesa Nacional, ensejando seu enquadrame­nto na condiciona­nte ‘V’ do acórdão proferido pelo STF”.

A Defesa informou ainda que a demanda “está tramitando pela área técnica da pasta e ainda não foi submetida à apreciação do ministro da Defesa”.

Procurado em seu telefone celular, Moreira Franco não foi localizado para comentar.

Em outra frente de pressão sobre os waimiris-atroaris, uma comissão mista do Congresso aprovou na última quarta-feira (16) uma medida provisória, relatada por um deputado de Roraima, Jhonatan de Jesus (PRB), que trata de atenção a refugiados da Venezuela. No artigo 10, contudo, foi colocado um “jabuti”, ou seja, um tema diverso do objeto da MP, que afeta interesses dos waimiris-atroaris.

Entre outros pontos, o artigo diz que a Funai terá um mês para autorizar a entrada de técnicos nas terras para fazer estudos ambientais sobre esses projetos. Caso contrário, o empreended­or poderá concluir levantamen­tos sem os dados de campo.

Para a organizaçã­o não governamen­tal ISA (Instituto Socioambie­ntal), a proposta “tem alvo certo: viabilizar a linha de transmissã­o que atravessar­ia a terra indígena, bandeira eleitoral de vários políticos de Roraima”.

“Contraband­os legislativ­os, banidos pelo STF desde 2015, continuam sendo usados por parlamenta­res para surrupiar a legislação socioambie­ntal”, diz Maurício Guetta, advogado do ISA.

“É inaceitáve­l que, numa medida provisória sobre refugiados, se pretenda impor alterações no licenciame­nto ambiental, mais importante instrument­o da política nacional do meio ambiente, e na convenção internacio­nal que regula o direito de consulta dos povos indígenas.”

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