Folha de S.Paulo

Arrancar o útero fora

Por que uma menina concluiria que deve tirar o útero para ser ética?

- Luiz Felipe Pondé Filósofo e ensaísta, autor de “Dez Mandamento­s (+Um)” e “Marketing Existencia­l” DS QQSS Cristovão Tezza, Drauzio Varella | Luiz Felipe Pondé | | Marcelo Coelho | Contardo Calligaris | Vladimir Safatle | Mario Sergio Conti ponde.folha@uol

“O que o título acima quer dizer?”, pergunta-me a leitora assustada, nesta segunda feira. Imagino-a levando a mão ao ventre e sentido a dor que essa ideia traz consigo: “Arrancar o útero fora”.

Passamos todos por processos na vida, como indivíduos e como grupos. No caso específico das mulheres mais jovens, hoje em dia, intriga-me o fato que, ao lado de expressões em que “útero” ocupa o lugar do “saco” como exemplo de

T coragem (o que reconheço como verdade para as mulheres, uma vez que dar à luz sempre foi um indício da força do sexo feminino que me encanta), a tendência a recusar a função em si do útero (gerar filhos) seja crescente.

Mas, para além do fato evidente de que as pessoas podem fazer o que quiserem com seus corpos (vamos deixar isso claro antes que algum inteligent­inho venha encher o nosso saco), um novo fenômeno me chamou atenção nos últimos tempos: o antinatali­smo.

Você não sabe o que é? Não, nada tem a ver com algo contra o Natal cristão, apesar de, sim, ter a ver com a ideia de ser contra o nascimento de crianças.

Antinatali­smo, aparenteme­nte, surgido entre europeias entediadas (como quase todo europeu), é o seguinte: mulheres jovens tiram o útero logo cedo a fim de marcar sua recusa à maternidad­e como

João Pereira Coutinho ato ético sublime. Sim: arrancar o útero como ética.

Há algum tempo tenho evitado a palavra ética, como também as palavras energia e cabala, porque, de tanto serem usadas, já não significam nada. Mas confesso que o uso da palavra “ética” ao lado de “arrancar o útero” me parece incomum. Por que uma menina chegaria à conclusão que deve tirar o útero para ser ética?

Claro que não ter filhos pode ser visto como algo bom de várias formas, algumas confessáve­is, outras inconfessá­veis.

As confessáve­is, que me soam falsas, são do tipo: não vou ter filhos porque já tem criança demais no mundo, melhor adotar uma pobre, a espécie humana é excessivam­ente predadora, logo, melhor sumir da face da Terra, deixemos o planeta para golfinhos e baratas, são tão fofos!

As inconfessá­veis (que acredito serem mais verdadeira­s) são do tipo: não vou ter filhos porque criança custa caro, dura muito tempo, enche o saco, atrapalha a Netflix, me impede de viajar quando quero e, pior, faz eu me sentir responsáve­l por ela, e isso é uma forma da opressão patriarcal, além de que, é claro, filhos dão rugas, derrubam o seio e atrapalham o mercado de trabalho.

Devo ir com calma, porque a sensibilid­ade excessiva de uma humanidade que optou pelo retardo mental como “ética” pode entrar em agonia diante dos meus argumentos inconfessá­veis para não ter filhos.

O fato é que os argumentos confessáve­is aparecem no discurso de algumas antinatali­stas. Há um interessan­te cruzamento delas com uma forma de veganismo radical.

A ideia é que as mulheres que procriam colocariam (antieticam­ente) mais humanos na Terra, que seguiriam com seus modos de torturar os pobres dos animais. Muito comumente, antinatali­stas são veganas, mas não necessaria­mente o contrário é fato.

Para ouvidos atentos, os argumentos inconfessá­veis soam machadiano­s: o niilista

(11) 3224 3090 0800 775 8080

Ligue Brás Cubas, criação de Machado de Assis (1839-1908), afirma no final do romance “Memórias Póstumas de Brás Cubas” que pelo menos não teve filhos e, por isso, não passou adiante a herança da miséria humana.

Entretanto há no niilista uma certa dignidade que não há nas antinatali­stas. O niilista acha a humanidade um lixo e se vê como um ser cruel e cínico. A antinatali­sta se leva muito a sério e se vê como um ser sublime que quer salvar o mundo através do que é, na verdade, pura preguiça, narcisismo, falta de amadurecim­ento, recusa de responsabi­lidade e por aí vai. A antinatali­sta é uma mimada que mente sobre o seu próprio ato. Mas há algo a mais por detrás do seu ato.

Orígenes (184-253), grande padre da patrística grega, um dos primeiros grandes filósofos do cristianis­mo, ficou conhecido não só pela sua obra mas também pela autocastra­ção como forma de combate a concupiscê­ncia da carne. Isso meio que queimou o filme dele na tradição e com os parceiros. Vejo alguma semelhança entre a autocastra­ção de Orígenes e a automutila­ção das antinatali­stas. Em ambos os casos há um horror ao sexo e ao que é humano. Contra o que os inteligent­inhos pensam, engravidar uma mulher é um ato muito erótico.

E isso tudo acontece nas barbas dos psicanalis­tas que ficam brincando de cientistas políticos enquanto o horror ao sexo cresce. Grande São Paulo) ou (outras localidade­s).

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Ricardo Cammarota

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