Príncipe saudita fecha cerco a ativistas enquanto moderniza costumes do país
Desaparecimento de jornalista é novo episódio de escalada na repressão a vozes dissonantes
Uma saudita que lutou pelo direito de dirigir foi colocada à força em um avião nos Emirados Árabes Unidos, onde estudava, e presa assim que chegou a Riad. Um estudante asilado no Canadá que critica o governo nas redes sociais teve seu celular hackeado e seus irmãos foram presos como represália. Um jornalista que fazia críticas ao seu país desapareceu após entrar no consulado saudita na Turquia para tirar documentos.
Os três casos são exemplos de uma recente escalada na repressão do governo da Arábia Saudita a qualquer voz dissonante, que não poupa mais nem quem está no exterior.
Ao mesmo tempo em que se vende ao mundo como um modernizador e realiza reformas como o fim da lei que proibia mulheres de dirigir, o príncipe herdeiro Mohammed bin Salman fecha o cerco contra sauditas que lutam por direitos humanos. Há denúncias de ameaças a ativistas, prisões arbitrárias, julgamentos injustos e ciberataques.
Organizações como a Human Rights Watch (HRW), a ONU e a Anistia Internacional afirmam que a repressão piorou a partir de 15 de maio, pouco antes do fim do veto às mulheres na direção.
Ao menos 13 mulheres foram presas. Homens que também lutam pelos direitos femininos foram detidos na mesma campanha. Nove das presas ainda não foram liberadas e estão sujeitas a longas penas, e várias outras foram proibidas de deixar o país.
O último capítulo da perseguição a dissidentes é o desaparecimento do jornalista Jamal Khashoggi, que morava na Turquia, após entrar no consulado de seu país em Istambul. A polícia turca vê indícios de que ele foi morto no edifício. Os sauditas negam.
Khashoggi era colaborador de meios de comunicação como o americano Washington Post. A polícia acredita que ele foi assassinado e teve seu corpo desmembrado por 15 agentes sauditas que foram à Turquia com esse objetivo.
“Esse caso deixou em choque defensores dos direitos humanos e dissidentes sauditas em todo o mundo, erodindo qualquer noção de buscar um refúgio seguro no exterior”, disse Lynn Maalouf, diretora de pesquisas de Oriente Médio da Anistia Internacional, referindo-se a uma possível execução extrajudicial.
“As autoridades estão enviando a mensagem de que qualquer saudita está sujeito à perseguição e à prisão, independentemente de seu perfil e de ter reputação internacional”, disse à Folha Adam Coogle, pesquisador de Oriente Médio da HRW.
“Antigamente, essas pessoas estariam a salvo, porque o governo sabia que haveria muita cobertura da imprensa. Agora eles estão dizendo que não se importam.”
Segundo o pesquisador, em setembro de 2017, quando foi anunciado que a proibição das mulheres ao volante acabaria, autoridades alertaram ativistas para que não dessem entrevistas nem se manifestassem em mídias sociais.
“Houve um esforço para evitar que as mulheres celebrassem o fim da proibição e levassem os créditos pela mudança. Eles queriam que aquilo fosse visto como uma concessão de um ditador benevolente, e não como resultado de anos de ativismo civil”, diz Coogle.
Ele afirma que não há espaço para ativismo na Arábia Saudita e que vozes contrárias ao governo estão fora do país. “Praticamente todos os que defendem os direitos humanos ou fazem crítica ao governo estão na prisão”, diz.
Segundo a HRW, não há queixas formais contra os presos, além de acusações vagas como conspiração e traição. Eles estão sujeitos a penas de até 20 anos de prisão ou mesmo à execução. A Arábia Saudita foi o terceiro país que mais aplicou a pena de morte no ano passado, atrás apenas da China e do Irã: segundo dados da Anistia Internacional, foram 146 execuções em 2017.
Há um mês e meio, uma das dissidentes presas foi condenada, com mais quatro pessoas, à morte. Israa al-Ghomghan foi presa em 2015 por participar de manifestações contra a discriminação a muçulmanos xiitas no reino, que é predominantemente sunita. Se a sentença for cumprida, ela será a primeira ativista mulher executada no país.
O Alto Comissariado para Direitos Humanos da ONU criticou a falta de transparência sobre os processos contra ativistas e sobre informações sobre o paradeiros dos detidos.
Para pressionar os sauditas que vivem no exterior, o governo corta bolsas de estudo, envia convocações para que voltem ao país (onde são presos ou ameaçados) e prende familiares que moram lá, segundo relatos colhidos pelo The New York Times. Alguns sauditas evitam contato com conterrâneos no exterior por medo de serem espiões e não viajam a países árabes, para evitar serem enviados para casa à força.
Foi o que aconteceu com Loujain al-Hathloul, conhecida feminista que já havia ficado detida em 2014 por dirigir seu carro dos Emirados Árabes até a Arábia Saudita.
Em março, ela foi sequestrada por agentes em Abu Dhabi e levada à força para seu país. Foi presa, solta e depois presa novamente, em maio. Seu marido, famoso ator que estava na Jordânia a trabalho, também foi colocado à força em um avião e levado à prisão.
Outra ativista a ir para a prisão no fim de junho foi a professora Hatoon al-Fassi, que lutou pelo direito ao voto feminino e foi também uma das primeiras sauditas a tirarem carteira de motorista.
Um terceiro caso foi o de Samar Badawi, ativista dos direitos das mulheres e irmã de Raif Badawi, condenado a dez anos de detenção e a mil chibatadas por criar um blog considerado subversivo.
O episódio gerou uma crise diplomática da Arábia Saudita com o Canadá, após a ministra do Exterior canadense manifestar apoio a Badawi.
Entre as reformas realizadas por MBS (como é conhecido o príncipe Salman) desde junho de 2017, estão o enfraquecimento do poder da polícia religiosa, a permissão a mulheres de frequentarem estádios esportivos e a liberação de cinemas e shows.
Mas ativistas reclamam de leis discriminatórias que continuam em vigor, como o sistema de guardiões masculinos, pelo qual as mulheres precisam de autorização de um homem da família para tirar passaporte, se casar ou estudar.
Em entrevista à Bloomberg na semana passada, MBS disse que algumas das ativistas presas vazaram informações confidenciais para agências de inteligência do Qatar e do Irã, consideradas inimigas. Ele afirmou que tenta se livrar do terrorismo e que as mudanças no país não viriam sem um “pequeno preço”.