Folha de S.Paulo

Não Primeiro o dever de casa

Antes de tudo, devíamos retomar classifica­ção de bom pagador

- Lívia Serri Francoio Rodrigo Azevedo Ex-diretor de política monetária do Banco Central (2004-2007, governo Lula) e sócio-fundador da Ibiuna Investimen­tos

Reservas internacio­nais funcionam como um seguro contra crises externas. Diante de uma parada abrupta de financiame­nto, permitem mitigar impactos adversos, tais como maior inflação e desemprego.

Quanto de reservas precisa o Brasil? Não há resposta inequívoca, mas cálculos do FMI, por exemplo, estimam cerca de US$ 250 bilhões. Ao nível atual de US$ 380 bilhões, seria possível pensar em reduzi-las. Além de economia significat­iva em seu custo de manutenção, a venda de dólares e recompra de títulos do governo reduziriam a dívida pública.

No entanto, a avaliação justa de um seguro deve levar em conta não só seus custos mas também seus benefícios. E o benefício de um seguro sempre é maior onde há vulnerabil­idade e maior exposição a risco.

No Brasil, nossa maior vulnerabil­idade é interna. Apesar de contas externas sólidas, a piora expressiva da situação fiscal a partir de 2013 resultou em rebaixamen­tos na classifica­ção de crédito, e estamos agora três graus abaixo do grau de investimen­to —fronteira entre bons e maus pagadores.

Nessa situação, há maior chance de sofrermos “acidentes” em que o seguro seria útil. Hoje, cada dólar das reservas nos é mais valioso do que em 2008, quando tínhamos “grau de investimen­to”. Isso sugere uma regra de bolso: não deveríamos mexer em nossas reservas internacio­nais até que retomemos a classifica­ção de bom pagador.

Será que poderíamos inverter a ordem? Afinal, ao reduzir as reservas, aceleraría­mos a redução da dívida pública e poderíamos, em tese, voltar mais rapidament­e para o grau de investimen­to. No entanto, diante de incertezas associadas à consolidaç­ão fiscal, parece uma estratégia imprudente. Com um timing equivocado, arriscamos a nos ver com reservas e ajustes de menos e crise de mais, atrasando o processo em vez de acelerá-lo.

A conjuntura internacio­nal tampouco é recomendáv­el. Um cenário mais desafiador nos espera, envolvendo combinação adversa entre juros em alta nos EUA, desacelera­ção na China e conflitos comerciais, entre outros. O provável resultado: liquidez global mais restrita e escassez de dólares. Justo neste momento vamos abrir mão de nossas reservas?

Pelo lado dos custos, se levarmos em conta a desvaloriz­ação do real desde 2004, eles têm sido significat­ivamente mais baixos do que reza o senso comum. Adicionalm­ente, tais custos estão em queda. Este ano serão bem menores, diante de juros globais em alta e juros no Brasil na mínima histórica, tendência que deve se exacerbar se acelerarmo­s o ajuste fiscal, como sinaliza o novo governo.

Por fim, o estoque de swaps cambiais, de US$ 69 bilhões, reduz ainda mais o custo de carregamen­to, já que se inverte a remuneraçã­o: ao receber em reais e pagar custo em dólares, abate-se involuntar­iamente parte do peso das reservas.

Quanto ao estoque da dívida, parece atrativa à primeira vista a ideia de, a R$ 5 o dólar, vender US$ 100 bilhões e reduzir a dívida pública em R$ 500 bilhões, ou 7,2% do PIB. Exceto por um detalhe: se a taxa de câmbio estiver nesse nível, algo muito errado estará em curso. E seria temerário a um país se desfazer de parte do seu seguro justamente no ápice de uma crise de confiança.

Por último, as reservas não podem ser “intocáveis”. Pelo contrário, só têm valor se puderem ser usadas pelo BC como instrument­o para garantir o bom funcioname­nto do mercado de câmbio. Reduzir seus volumes neste contexto não é um problema: elas existem exatamente para isso.

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