Folha de S.Paulo

Dividir a vida com lápides de cemitério é rotina em bairro pobre na Grande SP

Moradores do Parque dos Girassóis, em Osasco, precisam ‘driblar’ as covas para chegarem a suas casas

- Ana Beatriz Felício e Ariane Costa Gomes Danilo Verpa/Folhapress

Em uma casa construída com pedaços de madeira, Adriano Cleber da Silva, 33, mora há cerca de 13 anos com a esposa e quatro filhos. Recém-casado e sem condições de pagar aluguel, mudouse para lá em 2005, no terreno que hoje abriga a comunidade Parque dos Girassóis, em Osasco, na Grande São Paulo.

Ali, estima-se que morem cerca de 700 famílias como a de Adriano —em casas simples, muitas delas improvisad­as com restos de materiais de construção e a poucos metros de... túmulos.

A comunidade não é só vizinha de um cemitério, ela está parcialmen­te dentro de um. Para chegar e sair do Parque dos Girassóis, muitos moradores passam pelos jazigos. Ver pessoas atravessad­o a área e driblando as covas é tão comum quanto ver crianças correndo e brincando no local.

Segundo a prefeitura, por ser uma área de difícil acesso, o cadastro social realizado em 2011 está desatualiz­ado e o número de famílias morando no local é ainda maior.

“As famílias usam o cemitério como local de passagem, lazer e até estacionam­ento para carros. É muita gente que mora na área de defesa do cemitério”,diz o auxiliar administra­tivo Fábio Bezerra, 20.

Com muros derrubados, é difícil identifica­r onde termina o cemitério e começa a comunidade. As crianças brincam descalças entre as lápides. Há garotos que jogam futebol e famílias passeiam com os cachorros e caminham pelo local com sacolas de mercado. Há até piquenique. “Não é muito bom, mas fazer o quê? É o que tem”, desabafa José Nilton, 40, pai de três filhos.

Futebol e pipa são as brincadeir­as preferidas de Ryan, 11, e seus amigos. “Gosto de morar aqui, de ter amigo para brincar”, conta o garoto, um dos filhos de Adriano.

Em maio, um incêndio atingiu a comunidade. Ninguém se feriu, mas algumas famílias perderam suas casas.

Segundo a Prefeitura de Osasco, foi o segundo caso registrado no terreno, que também pertence a uma empresa privada. Em 2015, houve um deslizamen­to. Na ocasião do incêndio, houve uma remoção parcial da favela.

A prefeitura diz que a po- pulação do bairro será levada para conjuntos habitacion­ais. Um deles chamado Minha Casa Minha Vida Conjunto Miguel Costa, deve abrigar cerca de 200 famílias e as entregas estão previstas para dezembro deste ano em Quitaúna, a 7 km, também em Osasco.

As demais famílias serão encaminhad­as para habitações em fase de captação de recursos. A gestão diz que serão analisadas caso a caso e poderão ter acesso ao Bolsa Aluguel (R$ 300) por até 18 meses.

Enquanto aguardam, os moradores têm receio de investir. “Se for tirar, não vamos gastar, porque se formos construir aqui vamos gastar muito. Aí gastamos e vêm e derrubam tudo”, diz José Nilton.

A energia elétrica é puxada de postes, alguns barracos já possuem água, mas para aquelas onde o recurso não chegou, é necessário usar água do próprio cemitério. A solução foi improvisar cerca de 400 metros de mangueira.

Quando chove os moradores precisam lidar com outro problema: os alagamento­s. Maria Elza da Silva, 55, desemprega­da, conta que já perdeu móveis diversas vezes.

O terreno do Parque dos Girassóis fica em um declive e a comunidade cresceu na extremidad­e dessa descida. “Quando eu precisava sair para trabalhar e sabia que ia chover, meu corpo ia, mas minha cabeça ficava, porque sabia que iria perder tudo. A gente trabalha e luta para ter as nossas coisas e ver a água levar assim não é fácil. Eu queria muito poder mudar daqui”, diz.

Para as crianças que frequentam o cemitério, nem tudo é brincadeir­a. Há algumas que também trabalham. Ao perceberem a aproximaçã­o de um carro, correm para oferecer ajuda para o plantio ou carregamen­to de flores. Em troca, recebem algumas moedas dos visitantes.

Uma dessas crianças é Roberta (nome fictício), 8. Tímida, mas com sorriso largo, ela mora próximo às lápides, e trabalha no cemitério aos fins de semana cuidando de carros. “Eu não tenho medo de trabalhar em cemitério”, comenta. “Morto já foi vivo, ué, porque teria medo?”.

“Gosto de trabalhar aqui e poder comprar presentes para minha mãe. Mas não gosto muito de onde moro, porque tem muitas brigas”.

Sob responsabi­lidade da prefeitura, o local tem entulho em diversos pontos, tumbas abertas, além de grama alta e problemas no asfalto.

Segundo Antenor Batista de Souza, 68, que trabalha na manutenção elétrica do local, só há iluminação na administra­ção, na capela e no velório.

Segundo Ednilson Viana, professor de gestão ambiental na USP, além da segurança, pode haver outro problema. “Há diversos estudos que dizem que os cemitérios são uma atividade poluidora”, afirma.

Termo ainda discutido por especialis­tas, o necrochoru­me é um líquido gerado na decomposiç­ão do cadáver. “A forma como uma pessoa veio a óbito pode tornar a degradação ou o líquido gerado na decomposiç­ão mais poluidor ou mais perigoso”, diz Viana.

“A contaminaç­ão poderia ocorrer por meio do contato dérmico; por ingestão da água do solo potencialm­ente contaminad­a e por volatiliza­ção. Mas dependendo da forma como o cemitério foi construído não há muita possibilid­ade de contaminaç­ão”, avalia Camila Camolesi, pesquisado­ra assistente no laboratóri­o de resíduos e áreas contaminad­as do IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológic­as).

A prefeitura diz que não há informaçõe­s sobre contaminaç­ão no local.

Alheia a essa discussão, enquanto olha o carro de um casal de idosos que foi visitar uma das lápides, a menina Roberta senta na guia sob uma árvore. “Quando eu crescer quero ser policial. Vou poder cuidar não só dos carros, mas da minha mãe e das outras pessoas também”, conta.

“Eu não tenho medo de trabalhar em cemitério. Morto já foi vivo, ué, porque teria medo?

Roberta, 8 (nome fictício)

moradora do Parque dos Girassóis, aos sábados, domingos e feriados, toma conta dos carros dos frequentad­ores do cemitério

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Comunidade Parque dos Girassóis, que divide terreno com cemitério de mesmo nome, em Osasco

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