Folha de S.Paulo

E o Natal chega cedo demais outra vez

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Dissipada a cortina de sangue que me turvou a visão no período eleitoral, percebi: o Natal chegou ainda mais cedo este ano.

Trenós voadores, renas, pinheirinh­os e pilhas de panetone invadiram o comércio na manhã seguinte ao Dia das Crianças. A voz da Simone já esgarça os ouvidos de quem empurra carrinho nos pegpags do mundo.

Nada contra o Natal. É divertido para a garotada. O que incomoda é a sanha de faturar a qualquer custo, nem que seja preciso puxar a temporada de compras para abril.

É uma aposta arriscada, dado que a disputa política destroçou as famílias. Tia reaça, primo petralha. No lugar do presente equivocado de outros Natais, pavê de arsênico. Não me parece um cenário auspicioso para as vendas natalinas.

Mas o povo insiste. Veja o setor de panetones. Superando o recorde anterior, neste Natal teremos 794 opções —entre doces, salgados, amargos e umami.

Panetone de calabresa, leite em pó com Nutella, carne-de-sol com macaxeira, sardinha ao chocolate.

E ainda têm a desfaçatez de demonizar a pobre uva-passa. Brasileiro gosta de panetone, mas não gosta de passas. Panetone sem passas é como hot-dog sem salsicha.

Com ou sem passas, o cardápio natalino não comove. O peru, o injustiçad­o peru, deu lugar ao frangão —Blaster, Hipster, escolha a marca comercial de sua predileção—, bicho inflado e sem gosto.

Sem falar que o timing da cozinha natalina é uma tragédia. Um só forno é usado para preparar frango, peru, pernil, presunto, cabrito. Sem espaço para assar tudo ao mesmo tempo, o cozinheiro festivo faz a ceia em etapas.

O calor do Natal brasileiro não condiz com um forno ligado por três dias a fio, mas pelo menos o resultado é um desastre. Requentada, a carne chega estorricad­a à mesa. A farofa, nota tropical, seria um toque esperto não fosse o perfil árido dos assados.

No mais, o cardápio natalino se esmera em macaquear tradições sensatas para temperatur­as boreais de dezembro. Nozes, castanhas, avelãs, tudo o que é calórico e gorduroso, manteiga, presunto defumado, doces cheios de creme e de frutas secas. É de suar às bicas sobre a porcelana que a mamãe tira do armário só uma vez por ano.

Ok, preciso reconhecer que tenho alguma coisa contra o Natal. Em especial contra o congraçame­nto forçado. “Não vá fazer feio com a titia, menino.” Sempre preferi o Réveillon, que pelo menos não finge ser uma celebração religiosa.

Ironicamen­te, neste ano, o Natal ganha na comparação. Quando os sinos badalarem 12 vezes à meia-noite de 25 de dezembro, ainda teremos uma semana sem os presentes de ano-novo.

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