Folha de S.Paulo

Livro de Flavio Cafiero une o caos do Brasil a uma tragédia familiar

Revelação da nova literatura nacional, o carioca acaba de lançar ‘Espera Passar o Avião’, seu segundo romance

- João Perassolo

Quando Flavio Cafiero chamou seus amigos para o lançamento de seu novo romance, “Espera Passar o Avião”, no Rio de Janeiro, ele aproveitou a ocasião para fazer um manifesto.

O convite no Facebook do escritor afirmava que ele era gay e artista e que talvez alguns de seus conhecidos que apoiam Jair Bolsonaro se sentissem incomodado­s com isso.

“Umas dez pessoas não foram, mas que diferença faz? Vou vender dez livros a menos?”, provoca o autor.

Essa postura militante ganhou tons amenos para a sessão de autógrafos do livro em São Paulo —há uma semana, apenas um dia antes do segundo turno das eleições presidenci­ais. “Dia de ficar junto, de dizer que não tem ninguém sozinho”, dizia o convite postado na conta de Cafiero no Instagram.

O recado do escritor para um país que chegou a uma “situação limite”, como diz, foi dado. Finalista dos prêmios Jabuti e São Paulo de Literatura com seu primeiro romance, “O Frio Aqui Fora”, de 2013, Cafiero não se furta, em sua literatura, em abordar o Brasil que leva “empreiteir­os e políticos para a cadeia” e coloca “a Petrobras em um mar de lama”, como afirma o narrador do novo livro.

Na trama, Felipe, um técnico de som abastado que mora em Lisboa, volta para o Rio de Janeiro, sua cidade natal, com o objetivo de rodar um filme com seu melhor amigo, Zé.

O projeto, a ser realizado durante três semanas “sob o massacre solar do Rio de Janeiro”, acaba sendo um duplo acerto de contas do personagem. Por um lado, com uma cidade chacoalhad­a pelos protestos de junho de 2013 e em obras intermináv­eis préOlimpía­da; por outro, com um fato ocorrido no passado: a morte do irmão mais novo, Fábio, com apenas 12 anos.

Carioca, Cafiero entende o Rio como uma espécie de laboratóri­o de experiment­os que acontecem posteriorm­ente no Brasil todo. “O Rio teve o Crivella antes do Bolsonaro”, brinca, em referência ao prefeito da cidade, Marcelo Crivella, do PRB, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus.

O autor diz ainda duvidar da “máscara de homem feliz do brasileiro” que a cidade representa. No romance, o protagonis­ta tenta se desvencilh­ar dessa camisa de força o quanto pode, soando convincent­e em certos trechos e mimado em outros.

Em paralelo à rodagem do filme, Felipe é assombrado pelas memórias da morte do irmão, fato que retorna em diversos momentos do texto, sempre envolvido em incertezas. “O moleque se encanta com o beija-flor ou a borboleta, levanta a janela e se arrisca no parapeito, estica o braço, aí se desequilib­ra, e fim. Não é bonito, zero de poesia, não, um menino de 12 anos já conhece os perigos, é de esperar, não pode ter sido assim”, titubeia o narrador.

A barulheira de uma mente atormentad­a pela tragédia familiar aliada ao clima caótico vivido pelo Brasil vão, gradativam­ente, deixando o protagonis­ta surdo. A poluição sonora é como o avião cortando o céu a que se refere o título do livro. Para Cafiero, o avião ruidoso é uma metáfora de tempos difíceis —incluindo os atuais.

Espera Passar o Avião

Flavio Cafiero. Ed. Todavia. R$ 59,90 (272 págs.)

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Renato Parada/Divulgação O escritor Flavio Cafiero

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