Folha de S.Paulo

Por uma exclusão inclusiva

Seria o objetivo do vencedores disseminar a cizânia entre os perdedores?

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

No início da semana apoiadores de Jair Bolsonaro passaram a circular, via WhatsApp, uma mensagem pedindo boicote a 700 artistas, jornalista­s, celebridad­es e intelectua­is que se opuseram à candidatur­a do capitão. A situação é grave e não posso me calar diante do que vejo não só como uma injustiça, mas como um crime: meu nome está nesta lista, enquanto o de opositores que são muito mais artistas, mais jornalista­s, mais celebridad­es e mais intelectua­is do que eu, ficaram de fora.

Segundo matéria do “Congresso em Foco”, os 700 nomes foram selecionad­os entre as 190 mil assinatura­s do manifesto “Democracia sim”, feito um pouco antes da eleição. E o que 189.300 brasileiro­s se perguntam desde que começaram a circular os zaps pedindo boicote, é: por que não estou na lista? Qual o critério da seleção? Quem escolheu os 700? Baseado em quê? O clima é de perplexida­de e confusão.

Há quem afirme que não existe nenhum critério na lista e que ela foi organizada da mesma forma que aquele café da manhã do presidente eleito, cuja foto circula nas redes: pão na mesa, sem prato, caindo em cima do celular, faca enfiada no queijo minas, uma lata de Leite Moça com uma colherinha lambuzada dentro. Ou que a lista foi improvisad­a às pressas, como o Morey Boogie usado para sustentar os microfones diante do presidente eleito, quintafeir­a (1º), na entrevista coletiva —ou melhor, na entrevista “restritiva”, uma vez que os jornais impressos foram proibidos de entrar.

Há, porém, quem veja racionalid­ade na lista e enxergue nela uma manobra tática de “guerra híbrida”, como as que foram usadas durante a campanha. O objetivo dos vencedores seria disseminar a cizânia entre os perdedores. Cada vez que um dos 189.300 signatário­s do “Democracia sim” abre a mensagem de WhatsApp, procura seu nome na lista, não acha e se pergunta, cheio de ressentime­nto, “por que ele e não eu?”, surge uma trinca nos pilares da oposição.

Já na terça-feira (30), no lançamento de um livro, senti os olhares enviesados, os comentário­s invejosos. Um escritor mais velho, afogando as mágoas no vinho barato, não conseguiu segurar seu rancor: “Eu não só assinei o manifesto, eu participei da organizaçã­o! Eu tive livro proibido pela ditadura! Quem esses caras acham que são pra não me boicotar assim?!”

Tive problemas até no trabalho. O diretor da série que estou escrevendo na Globo, o grande Luiz Henrique Rios, que tem em seu currículo novelas das seis, das sete, das oito, além de séries, minissérie­s e o escambau, ficou fora da lista. Eu, em meu primeiro trabalho como autor, lá estou. É uma inversão de hierarquia. Como se, digamos, um capitão ficasse acima de um general. Imagina só, que loucura? Os coautores da série, Chico Mattoso, Thiago Dottori e Bruna Paixão também foram inexplicav­elmente excluídos do clube dos 700. O ar na sala de roteirista­s está pesadíssim­o. Talvez não haja clima para uma segunda temporada.

Nem tudo, no entanto, é motivo para desesperan­ça. O pequeno texto que acompanha a lista diz: “Artistas que se manifestar­am contra a vontade do povo, pois mamam do dinheiro público! Se faltou algum, acrescente o nome e passe adiante.” Fica aí a chance, portanto, de todos aqueles que se sentiram boicotados do convite ao boicote incluírem-se na lista da exclusão. Façam-no e passem a lista adiante: o Brasil talvez não tenha jeito, mas podemos ao menos tentar salvar as nossas biografias.

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Adams Carvalho

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