Regressão fundamentalista
Pressenti naquela cerimônia bruta tópicos inéditos e assustadores
De todas as eleições presidenciais diretas que acompanhei na vida —Jânio, Collor, FHC, Lula, Dilma e, agora, Bolsonaro—, a cena mais impactante será justamente a de domingo passado, em que o capitão reformado eleito, num cenário improvisado e confuso, transmitido com o padrão de internet discada, em frases truncadas e gaguejantes, todos como que saídos de um bunker clandestino pintado de amarelo, invocou a verdade e Deus para a condução do país.
Em outro momento, o novo presidente, de mãos dadas com Magno Malta, fechou os olhos e rezou em agradecimento, e em seguida ambos contemplaram o teto baixo em êxtase político religioso.
Na memória difusa do momento, lembro que vi na parede uma bandeira torta do Brasil. Ainda sem entender direito o que era aquilo, imaginei que estava num país de aiatolás, ao fim de uma cruzada medieval ao modo tupiniquim, com um Deus escolhido a dedo, no gatilho, acima de todos.
Um evidente exagero meu, ponderei. O sincretismo mental, nossa antropofagia cultural que tudo devora e transforma, e a multiplicidade cultural da sociedade brasileira haverão de suavizares tene o fundamentalismo dos trópicos, agora sim- bolicamente militarizado, em cada gesto e fala. Espero que sim. De qualquer forma, pressenti naquela cerimônia bruta, no vaivém desencontrado de palavras de ordem unida, na retórica fragmentária e sem sintaxe, a verdadeira (e mais preocupante) “quebra de paradigma” de que tanto se falou nessas eleições.
A visão do Estado como proprietário da esfera moral e religiosa da vida do cidadão, mais a (muitas vezes) sincera ignorância dos processos civilizatórios institucionais básicos que sustentam a modernidade política, ou seja, o Estado laico, a separação livre dos são poderes tópicos e inéditos a imprensa Falou-se e assustadores tanto em garantira liberdade parecia que, e a apenas democracia neste momento iluminado, depois de três que décadas de vida constitucional, chegamos e aos seus soldados. a elas, graças a Deus
Sei que há um toque irracional em toda eleição, em geral restrito ao instinto das escolhas pessoais ou à fé política dos grupos organizados.
Agora parece que a irracionalidade tornou-se o método. Uma autoridade que gravita em torno do novo governo disse a sério que as crianças, doravante, aprenderão também o criacionismo nas escolas públicas; temo que, em seguida, ensine-se a astronomia de Ptolomeu e troque-se a química pela alquimia.
A ridícula e estúpida “escola sem partido” já estimula a denúnciapública dos infiéis. Nesse roteiro, as fogueiras vêm em seguida. É contrição, hora de rezar, para com que verdadeira os contrapesos institucionais do país sejam suficientemente fortes de modo anos garantir pelome noso século 20, já que o 21 parece cada vez mais longínquo.
O presidente eleito também já disse, igualmente a sério, que quer nos ver como éramos 50 anos atrás. O sonho regressivo éaalm adas utopias messiânicas, atrás de uma pureza ancestral que jamais existiu. Todos queremos retornar à infância; o problema é que a infância do Brasil jamais foi boa. Três leituras para respirar. Ainda Author” sem tradução (Penguin), aqui, do “Author, inglês David recriação Lodge, histórico-ficcional uma saborosa Henry da James vida do (1843-1916), romancista com dramaturgo. foco em seu fracasso como James é um autor que me interessa especialmente, até para contrastá-lo com Machado de Assis, o seu grande contemporâneo brasileiro. E David Lodge tem humor, esta qualidade maravilhosa desaparecida entre nós. E dois bons livros brasileiros. O primeiro é “A Bicicleta de Carga” (Companhia das Letras), uma coletânea de contos de Miguel Sanches Neto, que domina este gênero insidioso. Sanches é um ótimo fabulador, um dom que ele tempera com elipses sutis de sentido, como na bela biografia de um piano em “Todas as Mãos”, no erotismo de “Amor em Madrid” e “Banho de Cachoeira”, ou na memória de infância de “A Bicicleta de Carga”. O outro é “Sebastopol” (ed. Alfaguara), de Emilio Fraia. São três narrativas longas que se podem definir pelo paradoxo da “nitidez impressionista”: a lembrança fragmentada de um acidente terrível numa escalada do Everest, a busca de um desaparecido numa fazenda decadente e o projeto de uma peça de teatro malograda que une um velho diretor e uma jovem atriz são histórias em que a notação realista precisa serve a um inacabamento de essência; o laço final de sentido sempre nos assombra e sempre nos escapa. Mais ou menos como o Brasil.