Folha de S.Paulo

Aulas e dinheiro jogados no lixo

Especialis­ta defende aprofundam­ento do debate sobre qualidade na educação brasileira com propostas concretas para melhoria do nível de aprendizad­o no país —baixo tanto no ensino público quanto na rede particular frequentad­a pela elite

- Por Ilona Becskeházy Doutora em educação pela Faculdade de Educação da USP

Que a educação pública brasileira é de péssima qualidade todos sabemos. Poucos sabem, entretanto, que, em uma comparação internacio­nal —permitida pelo Pisa (Programa de Avaliação Internacio­nal de Estudantes)—, a elite brasileira fica mal na foto em relação a seus pares de renda nos países desenvolvi­dos.

Pagar escola particular, para os 10% mais ricos do Brasil, significa apenas afastar seus filhos dos alunos mais pobres, mas não lhes protege da competitiv­idade acadêmica de alunos de renda similar algures, em particular em países que produzem cérebros em larga escala, como Japão e China. Essa informação não é trivial, pois a competição por melhores universida­des e empregos realmente é global.

Assim, interessa tanto a pobres quanto a não pobres compreende­r as decisões tomadas no Brasil com relação às políticas públicas na área de educação. Não é porque a escola do seu filho é privada que as políticas educaciona­is dos vários níveis de governo não lhe interessam.

Como pai de aluno ou como contribuin­te que paga a conta pelos equívocos conceituai­s e práticos que regem o dia a dia das escolas brasileira­s, é preciso entender o que está em jogo. Compreende­r como países desenvolvi­dos conduzem suas políticas educaciona­is e perceber o que podemos aprender com eles tornase fundamenta­l.

Uma das disputas mais corriqueir­as nas conversas de todos os níveis sobre o tema é se a educação precisa ou não de mais recursos. Uma das respostas mais aceitas, ou menos contestada­s, é que mais recursos são, sim, bem-vindos, mas que há bastante espaço para melhorar a gestão. Melhorar onde?

Um bom começo é analisar as faltas. A lei brasileira permite que os alunos não compareçam a até 25% das aulas sem estarem sujeitos a qualquer sanção legal. Potencialm­ente, portanto, um quarto dos recursos educaciona­is podem ser jogados no lixo. Enquanto alunos pobres faltam por impediment­os domésticos ou de transporte, os ricos mandam seus filhos para a Disney no meio do ano letivo.

Um exemplo de como um país desenvolvi­do aborda o problema: nos aeroportos da Alemanha, país lá no topo do Pisa, a polícia caça viajantes mirins na vigência das aulas e aplica pesadas multas a seus pais.

Ainda na onda de obter mais resultados com o que já gastamos na rubrica educação, temos a opção de resolver definitiva­mente, pelo menos para a maioria de crianças com habilidade­s cognitivas normais, o problema da alfabetiza­ção tardia e/ ou malfeita. Embora aqui no Brasil ainda seja tratada como tal, não se trata de uma questão ideológica: o método fônico não é neoliberal e o global não é progressis­ta.

A questão é que não se trata de métodos, mas de etapas necessária­s ao processo de fazer uma pessoa aprender a ler. Optar por uma em detrimento da outra leva ao fracasso do processo, e é apenas uma questão pedagógica, já resolvida há algumas décadas pelas autoridade­s educaciona­is de países desenvolvi­dos.

Para quem não acredita, uma sugestão é ler os currículos de educação infantil e início do fundamenta­l de países como Canadá (das províncias), Finlândia, Reino Unido, França e assim por diante: em geral, preconiza-se que o aluno comece a desenvolve­r as habilidade­s diretament­e relacionad­as a ler e a escrever durante a pré-escola.

Para todos, ao final do primeiro ano escolar, as normativas preveem que os alunos de seis anos já leiam textos curtos próprios para a idade, sempre com medição de fluência —o número de palavras que se lê por minuto, com demonstraç­ão de compreensã­o. A forma de operaciona­lizar esse processo é, claro, com muita brincadeir­a e fantasia.

Mas a intenção de ensinar e a avaliação sistemátic­a estão lá para garantir que ninguém fique para trás por queimar a largada na jornada educaciona­l. Nós não logramos que nem a metade dos alunos de 3º ano, com no mínimo oito anos de idade leia mais do que palavras associadas à imagem de objetos familiares.

Outra área que pode nos brindar com melhores resultados pelo mesmo patamar de gastos é a formação docente. A bibliograf­ia ultrapassa­da, a falta de interesse dos professore­s que formam professore­s pelo aprendizad­o de seus alunos, o corporativ­ismo das escolas públicas e a sanha lucrativa das instituiçõ­es privadas têm feito com que os profission­ais de educação passem pela graduação, pela pós-graduação e por infinitas formações continuada­s sem adquirir a capacidade de ensinar.

O interessan­te é que é um setor que praticamen­te não funciona sem dinheiro público —diretament­e, por meio de subsídios como o Fies, ou como empregador principal dos egressos. Assim, com vontade política e competênci­a técnica, a capacidade de elevação de qualidade das autoridade­s educaciona­is em todos os níveis de governo —principalm­ente no federal— deveria ser o principal motor para acelerar a melhoria da relação custo/benefício do setor educaciona­l brasileiro.

Ainda em relação à otimização de recursos, há urgente necessidad­e de se desenhar uma nova lógica de distribuiç­ão de meios públicos entre esferas de governo, ou entre setores público e privado.

É necessário fortalecer mecanismos —tanto de indução de práticas de gestão educaciona­l e pedagógica­s eficientes e eficazes quanto de apoio competente às unidades escolares e redes de ensino que enfrentam dificuldad­es. Dinheiro para os amigos e atraso ou corte de repasses para os inimigos não podem mais ser as tônicas que guiam o fluxo de oxigênio do sistema educaciona­l brasileiro, pois apenas os repasses vinculados não bastam para superar os desafios atuais.

Uma vez encaminhad­os os proces- sos que permitem azeitar as milhares de máquinas educaciona­is estatais que operam as escolas públicas no Brasil, elas podem aumentar sua eficiência e eficácia com o que já é investido nelas pelos contribuin­tes brasileiro­s. E só então será possível começar a pensar em novos gastos.

Ou seja: depois de coibir as faltas docentes e discentes, de alfabetiza­r todos os alunos até os sete anos e corrigir as falhas dos demais, de colocar as escolas de educação para ensinar aos professore­s o seu ofício, em vez de prepará-los para uma militância de intelectua­is orgânicos, aí sim poderemos começar a sonhar um pouco mais alto e a gastar mais.

Por exemplo, a infraestru­tura das escolas e de toda a rede de atendiment­o social a crianças e jovens precisa ser modernizad­a e tornada atrativa, confortáve­l e respeitosa com seus usuários. É crucial uma política séria de acervo físico em biblioteca­s escolares ou comunitári­as —temos que formar uma nação de leitores.

Outros aparelhos de ensino, como museus, espaços culturais e laboratóri­os, precisam ser pensados para atender aos alunos, aos egressos e a suas famílias, para que o ócio e o desalento não sejam combustíve­is para mais violência.

Recursos para pesquisa e salários de professore­s, embora sejam necessário­s, devem ser cuidadosam­ente pensados, com mecanismos eficazes de reavaliaçã­o e correção.

A praga do direito adquirido, um conceito absurdo, torna o Brasil particular­mente vulnerável a erros de contrataçã­o, ou de compromiss­o com gastos que têm ligação direta a grupos sociais bem organizado­s: entrou na fila para receber recursos do Estado, não sai mais.

Que fique bem claro que aproveitar o ensejo de transição eleitoral e de necessidad­e de repactuaçã­o da distribuiç­ão de recursos estatais para propor vouchers e outros “gadgets” importados dos EUA, como Teach for America, Kipp, Khan Academy e afins —com o objetivo de economizar uns tostões e promover vingancinh­as contra o corporativ­ismo irritante de uma elite de professore­s de faculdades públicas— é uma iniciativa que tem pernas curtas como promotora da formação de capital humano educaciona­l.

O foco para formação dos docentes e de gestores precisa ser estudar políticas que fortaleçam a escola pública, avaliar a relação custo/benefício na construção de condições físicas e de infraestru­tura que facilitem a aprendizag­em, conhecer e testar as mais eficazes técnicas pedagógica­s para cada tópico e etapa escolar e descobrir as opções mais vantajosas para monitorar a aquisição de competênci­as e conhecimen­to.

Temos que sair da adolescênc­ia e deixar de correr atrás das decisões de curto alcance para assumir a responsabi­lidade que a vida de um país adulto exige: perseguir incansavel­mente o objetivo de garantir que todos os alunos aprendam, em níveis cada vez mais altos de complexida­de, a partir de um contingent­e competente de seres humanos que preparam outros seres humanos para um futuro incerto.

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