Folha de S.Paulo

As novelas irão salvá-lo do teatro?

- Por Samir Yazbek Dramaturgo, é autor das peças ‘O Fingidor’ (Prêmio Shell 1999), e ‘As Folhas do Cedro’ (Prêmio APCA 2010) Ilustração Jaqueline Arashida Ilustrador­a

namorada E lá em São Mateus? ator Que tem? namorada Você não ia visitar aquele grupo de teatro? ator Agora vai ficar difícil, né? namorada Faz tempo que a gente está para marcar um papo com eles, hein? ator É melhor esperar a novela acabar. namorada Parece que você não está com muita vontade de ir até lá. ator De onde você tirou isso? namorada A periferia é muito longe, né? ator Está sendo irônica? namorada Por que estaria? ator Aquele pessoal está com tanta pressa assim de me receber? namorada Faz dois anos que você prometeu que daria uma palestra para eles. ator Por que eles não chamam outro ator?

namorada Você está falando sério? ator Qual é o problema?

namorada Eles têm a maior admiração pelo seu trabalho e você vem falar em outro ator? ator Admiração?

namorada Esqueceu como essa história toda começou?

ator É claro que não.

namorada Você sempre inspirou aquele grupo de teatro.

ator Eu sei disso.

namorada Eles foram assistir à sua peça mais de uma vez!

ator Ainda bem que não foi essa última. (Um silêncio.) Será que não tem mais ninguém de confiança para ir até lá? namorada Como assim? ator Alguém que possa me representa­r. namorada Não seja ridículo! ator Aquele povo que circula pela periferia só quer saber de sugar o sangue daquela gente, não é verdade?

A Namorada e o Diretor se mostram indignados.

namorada Bom... Acho melhor eu

ir embora. ator Já?

namorada Eu preciso trabalhar na minha tese.

ator (Tentando seduzi-la) Dorme aqui hoje. namorada (Afastando-se) Não posso. Um silêncio.

ator Que foi?

namorada Nada.

ator De repente você ficou estranha.

namorada Você fala merda e não quer que eu fique estranha? ator Mas o que foi que eu disse?

namorada Você acha que eu quero sugar o sangue daquela gente? ator Eu não estava falando de você!

namorada Às vezes parece que eu não te conheço.

ator Por quê?

namorada Parece que ninguém te conhece.

ator Ninguém?

namorada O pessoal de São Mateus entrou numa furada.

ator Como assim?

namorada Eu também entrei numa furada.

ator Para de falar besteira!

Sai a Namorada.

ator (Referindo-se à Namorada) Mas o que aconteceu com ela? diretor (Aproximand­o-se do Ator) Você não sabe?

ator Ela nunca falou assim comigo! diretor E como você tem falado com ela?

ator Bem que a minha mãe me dizia que eu nunca me casaria. diretor Mas isso já faz tanto tempo.

Um silêncio. ator Por que você voltou? diretor Preciso mesmo justificar uma coisa dessas?

ator Você me ignorou por tanto tempo.

diretor Eu não estava muito bem da cabeça.

ator Agora é fácil de falar, né?

diretor Você sentiu muito a minha falta?

ator Pensei que fosse enlouquece­r.

diretor Mas o teatro continua nos aproximand­o.

ator O teatro não deixou espaço para mais nada.

diretor Será que agora não dá para conciliar as coisas?

ator Você está falando do teatro e das mulheres?

diretor Talvez das novelas e do teatro. ator Temcerteza­queissoépo­ssível? diretor Ou quem sabe das mulheres e das novelas.

Entra a Mãe, introduzin­do o Plano da Memória, que se alternará com o Plano da Realidade e o Plano da Imaginação. O Diretor afasta-se do Ator.

ator A senhora tem de entender que o teatro é a minha vocação.

mãe Que vocação é essa que não te dá um tostão, meu filho?

ator A situação vai melhorar, mãe. mãe Sabe desde quando você me diz isso?

ator Hoje está bem melhor do que quando eu comecei.

mãe Você ainda conta moedas na minha carteira!

ator A senhora leva esse tipo de coisa a sério?

mãe Vai completar quarenta anos de idade!

ator Mania de ficar lembrando a minha idade.

mãe Até há pouco tempo você estava todo endividado.

ator Eu prometo que isso não vai acontecer de novo.

mãe Você não percebe que essa vocação está te levando à ruína?

diretor (Para o Ator) Por que você está se lembrando de sua mãe agora? ator Foge do meu controle! mãe (Para o Ator) Não sei o que eu fiz para merecer tamanho desgosto.

ator A senhora vai insistir no papel de vítima?

mãe Seu pai me deixou sozinha e olha só no que deu.

ATOR Deu que eu estou me virando muito bem!

mãe Parece que você não está querendo enxergar a realidade. ator Que realidade, mãe? mãe Como assim, “que realidade”? ator Qual é a realidade que eu preciso enxergar?

mãe A das pessoas comuns. ator Mas quem pode ser considerad­o uma pessoa “comum”, hoje em dia?

mãe Tanta gente que acorda cedo para trabalhar, na maior dureza...

O Ator fica transtorna­do.

diretor (Para o Ator) Tente entender o que a sua mãe está te dizendo! ator Ela não cansa de repetir as mesmas coisas!

mãe (Para o Ator) Você é muito presunçoso.

ator A senhora não tem o direito de falar assim comigo.

diretor (Para o Ator) Então a mande embora de uma vez!

ator Eu não consigo! diretor Ao menos procure se impor!

O Ator encara a Mãe com raiva, até que ela sai. O Ator relaxa. Alternamse o Plano da Realidade e o Plano da Imaginação.

diretor (Aproximand­o-se do Ator) Você não cansa desses diálogos saudosista­s?

ator Não tem nada de saudosista aqui. diretor E o que foi essa conversa com a sua mãe? ator Eu só estou me lembrando do meu passado.

diretor Você precisa se livrar desse passado!

ator Você se acha mais “real” do que a minha mãe, é isso?

diretor Eu nunca quis me comparar à sua mãe!

ator Pois saiba que ela é tão imaginária quanto você!

diretor Mas você não fará com que eu desapareça.

Um silêncio.

ator Tem sido um suplício trabalhar com teatro neste país.

diretor O que não tem sido um suplício neste país?

ator Eu só posso falar sobre as coisas que eu faço.

diretor Está na hora de pensar nos outros também.

ator Parece que ninguém mais pode fazer isso.

diretor Essa é a tirania imposta aos artistas!

ator A arte não interessa a mais ninguém!

diretor De onde você tirou um absurdo desses?

ator Chega uma hora em que todos os que te ajudaram só querem ver você cair. Da noite para o dia, de “novidade promissora” você passa a ser um “artista ultrapassa­do”.

diretor Você está com mania de perseguiçã­o.

ator O que tem de amigo meu tomando outro rumo na vida.

diretor A questão econômica é outra conversa.

ator Não há vocação que resista nessas condições!

Um silêncio.

diretor Lembra quando eu disse que você se tornaria um dos maiores intérprete­s deste país?

ator Como esquecer aquela entrevista que você deu à imprensa?

diretor E você acha que tem feito jus àquela previsão?

ator Você deve saber mais do que eu a esse respeito.

diretor Ou acredita que já conquistou o seu lugar ao sol?

ator Eu não conquistei merda nenhuma!

diretor Você não parece muito convencido disso.

ator Deus sabe como eu tenho tentado melhorar como ator.

diretor Mas os resultados não têm sido muito animadores, não é verdade?

ator O problema é que as pessoas com quem eu tenho trabalhado...

diretor Ah! Quer dizer que o problema são os outros.

ator É triste que tanto esforço não tenha se traduzido em qualidade.

diretor Então você reconhece que não tem se traduzido em qualidade? (Um silêncio.) Você sempre busca soluções fáceis, travestida­s de verdades profundas.

ator É assim que você me enxerga?

diretor Está mais preocupado em impression­ar os outros do que em descobrir a si mesmo.

ator Você também voltou para me atormentar?

diretor Acha que Baudelaire irá salvá-lo das novelas?

ator Mas quem disse que eu preciso ser salvo de alguma coisa?

diretor Ou que as novelas irão salvá-lo do teatro?

ator Eu já tenho cinquenta anos de idade!

diretor E daí?

ator Trinta anos de profissão!

diretor E continua encantado pelo decadente Baudelaire?

ator Eu ando pelas ruas e ninguém me reconhece! Qualquer youtuber é socialment­e mais importante do que eu! Não tenho dinheiro nem para trocar a minha geladeira! Isso é vida?

[SOBRE O TEXTO] O trecho nesta página faz parte da peça “O Eterno Retorno”, que estreia na sexta-feira (9) no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, com direção de Sérgio Ferrara. A montagem integra o projeto Samir Yazbek – Textos Inéditos, que também terá leituras dramáticas, uma oficina com o dramaturgo e um debate que o reunirá com Aimar Labaki e Silvia Gomez, em 1º/12.

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