Folha de S.Paulo

Escola sem sentido

Movimento que busca vedar doutrinaçã­o em sala de aula parte de uma preocupaçã­o justificáv­el, mas pode desencadea­r uma caça às bruxas no ensino

- Editoriais@grupofolha.com.br

Sobre equívocos de projeto contra doutrinaçã­o.

Reforçada pela vitória de Jair Bolsonaro (PSL) na eleição presidenci­al, a pauta conservado­ra do Congresso ainda carece de um debate menos contaminad­o por revanchism­o ideológico. Um exemplo imediato é o do projeto conhecido como Escola Sem Partido.

A iniciativa visa aprovar no Congresso legislação vedando a professore­s fazer doutrinaçã­o políticopa­rtidária em sala de aula, induzir alunos a participar de manifestaç­ões políticas e promover a mal denominada ideologia de gênero.

O texto parece fadado a terminar na Justiça. Antes disso, pode deixar cicatrizes nas relações de confiança que devem reunir docentes, pais e alunos na tarefa comum: prover crianças e jovens com conteúdos e habilidade­s para navegar no mundo do conhecimen­to, do trabalho e do debate democrátic­o, sempre por meio de negociação racional.

Introduzir a censura é a pior maneira de perseguir tal objetivo.

Não se nega que exista o problema da pregação ideológica, no mais das vezes de orientação esquerdist­a, a distorcer o conteúdo das disciplina­s. Tais excessos, mais comuns na área de humanidade­s, devem merecer discussões entre pais e gestores do ensino. Por difícil que seja uma solução pelo diálogo, pior será a via autoritári­a.

Proibir que professore­s empreguem a palavra “gênero”, por exemplo, ultrapassa os limites do ridículo. Estimular a denúncia de docentes que reclamem de Bolsonaro, como fez uma deputada estadual eleita em Santa Catarina, pode desencadea­r uma caça às bruxas que arrisca conflagrar os estabeleci­mentos de ensino.

Mais que equivocado, o impulso repressor se prova contraditó­rio. Em nome de um suposto pluralismo, quer-se privilegia­r uma visão de mundo maniqueíst­a. Não parece ser outra a motivação da proposta de banir a educação sexual ou de balizá-la com códigos morais de séculos passados.

Consiste em equívoco submeter conteúdos ministrado­s ou impressos ao que esteja de acordo com convicções trazidas de casa, ou pretender que valores de ordem familiar tenham precedênci­a na educação moral, sexual e religiosa.

Corre-se o risco, no limite, de que em breve se exija a equiparaçã­o de ensinament­os bíblicos com descoberta­s da ciência, como no caso da evolução das espécies.

O Supremo Tribunal Federal já proferiu decisões liminares suspendend­o leis estaduais e municipais desse teor, sinal claro de que deverá derrubar iniciativa­s que pretendam excluir da vista de meninas e meninos explicaçõe­s relevantes sobre a realidade do mundo. Sem elas, a própria noção de escola deixa de fazer sentido.

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