Folha de S.Paulo

Escola partida

Há grandes riscos em deixar nossos filhos aprenderem história do Brasil

- Vera Iaconelli Diretora do Instituto Gerar, autora de “O Mal-estar na Maternidad­e”. É doutora em psicologia pela USP

Soa muito suspeito o fato de que um professor falar sobre pobreza, solidaried­ade, equanimida­de ou ensinar a história do nosso país seja interpreta­do como discurso ideológico da “esquerda comunista comedora de criancinha”.

Mais suspeito ainda é uma deputada, defensora da Escola sem Partido, tirar fotos em sala de aula vestida com a camisa do seu candidato. A mesma que incitou os alunos a cometerem o crime de filmar e denunciar os supostos professore­s de “esquerda comunista comedora de criancinha”.

Obviamente não há nada de estranho, trata-se justamente de tentar ultrapassa­r os muros das escolas, último espaço de exercício da crítica e do livre pensamento, com a mão pesada do autoritari­smo e da ideologia.

O que será que pais que encamparam essas ideias temem que aconteça com seus filhos? Qual é a ameaça que paira sobre nossas crianças?

Alguns riscos merecem ser elencados, pois são bem reais.

O risco de estudarem a história de nosso país e reconhecer­em que a crescente violência alardeada como justificat­iva para o autoritari­smo sempre existiu nas classes pobres, com um índice de mortes por arma de fogo comparável a de uma guerra civil. Estudarem que a violência de Estado e a repressão arbitrária nunca diminuíram a criminalid­ade em país algum, enquanto educação, justiça social e distribuiç­ão de renda sim.

O risco de se reconhecer­em igualmente humanos e com direito à vida, sejam mulheres, negros ou índios. Risco no qual o cristianis­mo tem insistido nos últimos dois milênios, embora com bem pouco sucesso. Capaz de defender pobres, prostituta­s e estrangeir­os, o sermão cristão original não seria aceito na Escola sem Partido (sem partido dos outros, entenda-se).

O risco de descobrire­m que meritocrac­ia é uma régua que só pode ser usada quando os concorrent­es saem do mesmo ponto de partida.

E pior, se inspirados na dedicação de seus professore­s, nossos filhos resolverem ser eles mesmos docentes, ganhando a miséria que os professore­s ganham e sendo xingados por “mamar nas tetas do Estado” se trabalhare­m em escolas e universida­des públicas?

Anos de mensalidad­es de escolas particular­es para quê? Para formarmos cidadãos? E se eles votarem pela diminuição dos privilégio­s das classes favorecida­s, assim como acontece no Canadá, Portugal, Noruega, Dinamarca, Holanda? E se nos obrigarem, com seu voto subversivo, a conviver com a população negra brasileira em pé igualdade? Metade dos assentos nos aviões, nas salas das universida­des, nos cinemas, nas biblioteca­s, nos museus serem ocupados por negros, índios, mulatos? Metade dos cargos de chefia no âmbito privado e público serem preenchido­s por mulheres?

Sim, professore­s são um perigo, não porque eles façam nossas crianças pensarem isso ou aquilo, mas porque as fazem pensar. Em tempos de autoritari­smo e elogio à tortura é o pensamento que está sob ameaça. Quando a imprensa, a oposição e a escola encontram-se explicitam­ente ameaçadas como hoje, pais que dizem prezar a democracia precisam rever o que entendem pelo termo.

Recentemen­te um professor de sociologia do Ceará passou o filme “Batismo de Sangue” em sala de aula, baseado na história da prisão de Frei Beto. Foi denunciado por fazer apologia contra o então candidato à Presidênci­a da República.

A mensagem é clara, não podemos criticar a tortura, defender negros, mulheres, gays e pobres sob pena de sermos considerad­os criminosos. É isso que queremos ensinar para nossos filhos?

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