Folha de S.Paulo

É necessário abraçar a complexida­de

Suzana Herculano-Houzel Bióloga e neurocient­ista da Universida­de Vanderbilt (EUA)

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O cérebro é uma coisa engraçada. Não pode viver sem um problema. Na falta de assunto, arranja joguinho no celular, caça-palavras, qualquer coisa para resolver.

Mas quando aparece um problema de verdade, daqueles com várias partes por encaixar, que requer planejamen­to, estratégia e perseveran­ça, ele se apega à primeira resposta simples. Pode ser excesso de peso, dor crônica, nota baixa ou o futuro do país. O impulso é o mesmo: qual é a solução fácil?

O apelo do simples é tanto que até cientistas sucumbem. Duas décadas atrás, a depressão parecia ter encontrado mecanismo e remédio na bancada da farmácia: sua causa era a falta de serotonina, pois podia ser resolvida com Prozac.

Muita pesquisa mais tarde foi que se entendeu que a serotonina tem muitas outras ações além de regular o humor; que sim, o Prozac causa um aumento imediato dos níveis de serotonina, mas isso não tem nada a ver com o efeito antidepres­sivo; que a depressão, aliás, nem é causada simplesmen­te por “falta de serotonina”; mas que, ainda assim, o remédio funciona —apenas não do jeito que se pensava, nem pela razão que se pensava.

E isso faz perfeito sentido, porque o cérebro é um sistema complexo, cheio de partes que interagem e mudam umas as outras. Não é a “serotonina” que nos deixa felizes, assim como não é a “dopamina” que dá prazer: são os circuitos sobre os quais elas agem, os caminhos pelo cérebro que passam a ser mais ou menos trilhados dependendo da sua presença.

A simplifica­ção neurocient­ífica da vez parece ser o tal do “equilíbrio entre excitação e inibição”, tema da reunião de que participei semana passada.

Há tempos se fala de epilepsia como “excesso de excitação” e da ansiedade como “falta de inibição“, e agora, em parte por causa de novos exames que permitem detectar no cérebro níveis mais baixos ou elevados de Gaba ou glutamato do que de costume, distúrbios desde a depressão ao autismo vêm sendo tratados como simples falta ou excesso desses transmisso­res, os quais de fato regulam a atividade dos neurônios —de maneira geral.

Se Gaba e glutamato são usados pelo cérebro todo, mudanças nos seus níveis só podem causar mudanças específica­s e diferentes se ocorrerem em circuitos diferentes. Ou seja: o problema é o circuito, não o transmisso­r.

Descobrir o circuito comprometi­do dá trabalho, e alterá-lo, mais ainda. Mas é o que, a longo prazo, funciona de maneira duradoura, e para todos, ao invés de adotar a resposta simples e contar com a sorte.

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