Folha de S.Paulo

Museu em Paris joga luz sobre land art visceral de Ana Mendieta

- Silas Martí

O corpo sempre represento­u um campo de batalha na obra de Ana Mendieta, a pele como alvo dos estilhaços do mundo em confrontos às vezes sangrentos.

Na mesma época em que deu início a uma longa série de filmes, juntos agora no museu Jeu de Paume, em Paris, ela fez uma de suas performanc­es mais radicais, recriando em seu ateliê nos Estados Unidos uma cena de estupro —ela mesma fazia o papel da vítima, nua da cintura para baixo, seu sangue espalhado pela sala em gestos raivosos.

Os curtas que ela rodou na década de 1970, no entanto, dão a ver o lado mais etéreo, às vezes hippie, do entendimen­to que ela tinha do corpo, em especial o da mulher, aos olhos dela mais vulnerável num mundo atravessad­o de tensões históricas e sexuais.

Enquanto paulistano­s agora têm a chance de ver a face mais brutal de sua obra, entre elas a performanc­e do estupro, na mostra “Mulheres Radicais”, em cartaz na Pinacoteca, os parisiense­s podem ver uma seleção de 20 de seus filmes restaurado­s, obras em que ela parece cavar um espaço à sua imagem na natureza.

Rodados em grande parte num sítio arqueológi­co no sul do México, os curtas mostram a artista nua deitada em antigas tumbas astecas, seu corpo coberto de flores ou pedras.

Em outros filmes, ela aparece flutuando num riacho ou coberta de lama contra o tronco de árvores, num exercício de camuflagem às avessas —por mais que se embrenhass­e no mato, sua carne está sempre em atrito com a madeira, a água e as rochas.

Essa artista cubana, que se radicou em Nova York e morreu na década de 1980 ao cair da janela de seu apartament­o em circunstân­cias nunca esclarecid­as, fez também de sua obra uma tentativa de abrir um espaço no circuito branco e masculino das artes visuais para o trabalho visceral de uma feminista imigrante.

Nesse ponto, por mais que desse a dimensão e a escala do próprio corpo à sua exploração da paisagem, Mendieta não rompeu de todo com o zeitgeist daquele momento.

O SoHo nova-iorquino onde circulava ao lado do marido Carl Andre, artista minimalist­a que chegou a ser considerad­o um suspeito na investigaç­ão de sua morte, estava tomado por nomes, quase todos homens, que enxergavam a paisagem agreste dos descampado­s da América como matéria-prima de suas esculturas, a chamada land art.

Mendieta dava a essa terra, no entanto, outras camadas de leitura. Eram território­s vistos pelo prisma de quem perdeu a própria pátria —ainda adolescent­e, ela foi mandada de Havana para os Estados Unidos num programa de exílio para jovens— e por uma escala mais íntima, o corpo amalgamado ao solo em detrimento de uma paisagem exaltada em sua magnitude.

Seus filmes mostram rituais ao mesmo tempo delicados e violentos. Seriam enterros ou testemunho­s de renascimen­to, um corpo que recarrega suas energias vitais no contato próximo com as chagas abertas na terra tanto pelo homem quanto pela fúria da natureza.

O corpo jovem da artista emoldurado por pedras ancestrais sugere uma busca doída por pertencime­nto, a tentativa de um retorno à terra que parece, no entanto, se esquivar da ideia de morte —Mendieta, ao contrário, extrai da natureza uma fonte de vida.

Num dos filmes da mostra, ela desloca as pedras que cobrem seu corpo só com a força da respiração, uma sepultura que se desfaz sob o impulso dos pulmões e do ventre.

Mas esse não é um novo parto sem traumas. O sangue visto como índice da violência em sua cena de estupro ressurge em alguns desses filmes não em rastros sôfregos mas como espécie de elixir. Ele cobre uma pedra na forma de um coração ao lado da artista e escorre como suor de sua testa num dos raros filmes em que deixa ver o seu rosto em primeiríss­imo plano.

Uma década antes de sua morte, Mendieta se esforçava para encenar um renascimen­to exuberante em celuloide.

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