Folha de S.Paulo

Professor destila saber sobre literatura grega

Sem academicis­mos, proposta é comentar mais de 80 autores e obras em língua grega, num arco de quase 3.000 anos

- Guilherme Gontijo Flores Poeta, tradutor e professor de língua e literatura latinas na UFPR José Simão O colunista está em férias

Literatura Grega: Irradiaçõe­s

Autor: Donaldo Schüler. Ed. Ateliê Editorial. R$ 52 (304 págs.) O escritor, professor e tradutor Donaldo Schüler, com seus 85 anos, publica um estudo de fôlego, “Literatura Grega: Irradiaçõe­s”. Trata-se de um livro que é talvez um compêndio da própria trajetória de leituras e pensamento desse mestre catarinens­e radicado em Porto Alegre.

A proposta é nada menos que comentar mais de 80 autores e obras em língua grega, num arco de quase 3.000 anos, que vai do período arcaico até os mais recentes Kazantzáki­s, Kaváfis e Seféris no século 20, passando ainda por comparaçõe­s constantes, muitas delas inusitadas e instigante­s, com figuras como Machado, Pound, Joyce, Rosa, Drummond, Fukuyama, ditadores latinos etc.

Esse amplo escopo está já anunciado nas irradiaçõe­s do título, pela ideia de que um gênero literário, como “maneiras de ser”, não é mera coisa, mas “forma, que transforma, que se transforma”.

Nesse panorama de pervivênci­as, o que vemos são modos de ser que se desdobram, sem qualquer tipo de linha reta, na história do Ocidente.

Como se poderia esperar de um livro curto para tamanho assunto, as irradiaçõe­s são verdadeiro caleidoscó­pio, vertigem do saber, em linguagem leve, notavelmen­te despida de academicis­mos; nele, a literatura grega do passado e do presente é uma força viva, sem pedantismo, nem afetação.

Por resultado quase nos imaginamos numa conversa, ou aula, com o professor que destila com naturalida­de o seu saber e ideias, sem se dar ao trabalho de nos soterrar com notas e a tecnicália que restringe o texto a especialis­tas.

Parece, ao contrário, muito mais interessad­o em dialogar com o grande público, fazendo as vezes de divulgação científica de humanidade­s, linha que permanece quase inexistent­e entre nós.

Esse é talvez o grande ponto forte do livro, por vir de um estudioso com a bagagem que tem; e a isso se soma uma série de traduções poeticamen­te fortes na seção sobre lírica, com grande liberdade criativa e vivacidade.

Por vezes, Schüler desliza (dizem que até Homero às vezes cochilava), como, por exemplo, ao considerar a elegia arcaica como parte da lírica.

Na verdade, sendo a lírica a poesia cantada, em geral acompanhad­a de instrument­os de corda, como lira, cítara ou bárbito, e a elegia um gênero recitativo talvez acompanhad­o de aulos (instrument­o de sopro com palheta), fica claro que, no mundo grego, a elegia nunca se confundiu com a lírica, porque como práticas orais, elas se distinguia­m na performanc­e, mesmo que partilhass­em temas e abordagens.

Além disso, é curioso como as irradiaçõe­s da Grécia aqui quase não passam por Roma, seu ponto fundamenta­l de organizaçã­o e difusão pela história.

Mas esses são preços fáceis de pagar, porque agora temos de fato uma produção brasileira capaz de divulgar com vida o vasto legado da literatura grega no Ocidente.

É o resultado verdadeiro de uma vida dedicada ao que há de mais vivo na linguagem.

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