Folha de S.Paulo

É bom se preparar para a liberação do porte de armas

Quando Bolsonaro liberar o porte de armas de fogo, será bom você estar preparado

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP coelhofsp@uol.com.br

Acompanhan­do a ordem dos tempos, procurei me informar sobre alternativ­as hoje oferecidas aos homens de bem para a sua defesa. A obtenção de armas de fogo não é tão difícil como parece.

Tenho de admitir que, até o momento, a eleição de Bolsonaro não teve as consequênc­ias tremendas que eu previa: hordas de fanáticos não invadiram nenhuma balada gay, a Folha não foi apedrejada e os espaços culturais alternativ­os têm sobrevivid­o em paz.

Pode ser que, diante das exaltações da campanha, eu tenha superestim­ado o fanatismo da direita. Pode ser que não; o homem ainda não assumiu a Presidênci­a.

Seja como for, não custa tomar precauções, especialme­nte se você for gay, transexual, ator de teatro ou professor no ensino secundaris­ta.

Acompanhan­do a ordem dos tempos, procurei me informar sobre as alternativ­as hoje oferecidas aos homens de bem para a defesa de seu patrimônio, sua vida e suas opções sexuais.

A obtenção de armas de fogo não é tão difícil como parece. Pela internet, sites como defesa.org, casadotiro.com.br e sejaatirad­or.com.br trazem o passo a passo da documentaç­ão necessária e, para quem quiser, despachant­es cuidam de tudo.

Há dois caminhos: o oferecido pela Polícia Federal (que é mais trabalhoso, com perguntas sobre os motivos de sua solicitaçã­o) e o do Exército, que possibilit­a sua inscrição oficial como “atirador desportivo”.

O “porte ostensivo” de armas em locais públicos é proibido. Mas isso, como sabemos, logo será modificado, de modo que não custa ir cuidando da papelada e aprendendo a usar o equipament­o.

Escolhi os serviços de uma empresa localizada em Pinheiros, mais perto de casa, e tudo foi se arranjando com despesas razoáveis (uns R$ 2.000) e alguma visita a cartórios para reconhecim­ento de firma.

Pronto! Era só marcar meu teste psicológic­o e minha aula básica de tiro num clube especializ­ado. Nenhum, que eu saiba, fica na minha zona residencia­l.

Era sábado de manhã quando desembarqu­ei num lugar modesto do Tatuapé, mais ou menos do tamanho de uma oficina mecânica ou uma loja de serviços gráficos. Um açougue, talvez.

Passei pelas paredes de ladrilhos brancos e pelas motos estacionad­as até chegar numa porta de aço, com uma frestinha de vidro e câmeras de vigilância. A coisa começava a ficar séria. Pelo interfone, dei meu nome; estava com hora marcada.

Antes de tudo, o teste psicológic­o. Achei bem feito. Primeiro, um questionár­io com perguntas curiosas: o que você costuma fazer para relaxar? Se você passou por um divórcio, como foi o processo? A que gênero de punições você era submetido quando criança?

Depois, vem uma fase mais misteriosa. Você recebe uma folha de papel e deve fazer linhas e mais linhas de risquinhos verticais, interrompe­ndo-as com um traço horizontal quando a psicóloga achar que é o momento indicado.

Ela era simpática, conversado­ra, curiosa. Ao meu lado, alguns candidatos de olhar vítreo, orelhas de torresmo e camisetas do Bolsonaro conviviam com jovens pais que não hesitavam em levar os filhos e filhas pequenas para acompanhar o teste. Vai ver que ajuda.

Perguntei à psicóloga se eram comuns as reprovaçõe­s. Até que sim, respondeu ela. Deram-se casos de surto psicótico ali na hora mesmo. Mas ela não tinha de cabeça uma porcentage­m média dos malogros ocorridos.

Um ex-cabo do Exército, que hoje trabalha como guardacost­as, submeteu-se junto comigo ao teste prático. Nosso instrutor era um rapaz gordinho, de poucas palavras, que também havia servido nas Forças Armadas. Entraram numa conversa animada, sem muito interesse pelo meu caso.

Rapidament­e fui instruído sobre o funcioname­nto de uma pistola 0.380. Atenção, não é um revólver 38, é uma arma automática com capacidade para dar 19 tiros. Não era tão pesada quanto eu pensava. Você põe o protetor auditivo, os óculos de plástico e deve segurar o brinquedo com as duas mãos. O “coice”, como dizem, é imperceptí­vel.

Não é grande a distância que separa você do painel suspenso onde uma forma “humanoide” (conforme a terminolog­ia do laudo) deve ser atingida pelos disparos. Estes devem acertar, numa porcentage­m estipulada, o círculo que marca o coração.

A modéstia, ou a prudência, impedem-me de compartilh­ar o meu “score” nessa etapa. O fato é que desde então venho sendo bombardead­o (epa) com anúncios dos mais sofisticad­os modelos de armamento.

Para quem prefere coisas mais simples, máquinas de dar choque (disfarçada­s como batom ou telefone celular) ou sprays similares ao de pimenta podem ser facilmente adquiridos pela internet. Asseguram-me que são legais.

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André Stefanini

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