Folha de S.Paulo

Tênis vive dilema entre modificar regra e tolerar trapaça de técnicos

Proibição de orientar tenistas em jogos do circuito masculino e Grand Slams gera divergênci­a

- Christophe­r Clarey Edgar Su - 27.out.18/Reuters

Brad Stine é um treinador notável, muito experiente, e em geral respeita as leis. Mas como muita gente no tênis profission­al, ele viola regularmen­te as regras ao transmitir instruções aos seus atletas durante partidas.

Stine, ao contrário de alguns colegas no tênis masculino, não faz sinais ou usa palavras para se comunicar com seus atletas, mas transmite mensagens sutis. E diz jamais ter sido punido por isso.

“Acredito que muitas instruções sejam transmitid­as pelos treinadore­s, e que quem não admite que o faz não está sendo honesto sobre o que realmente acontece”, diz Stine, treinador do atual finalista de Wimbledon Kevin Anderson.

O esporte está claramente em um ponto de inflexão. O tênis feminino permite instruções durante os jogos uma vez por set nos torneios regulares do circuito, entre os quais o WTA Finals, que reúne as oito melhores tenistas da temporada e foi realizado em Singapura no fim de outubro.

Imagens das visitas dos treinadore­s à quadra, muitas vezes emotivas, se tornaram um dos traços caracterís­ticos da cobertura televisiva dos jogos e do material que a WTA (Associação do Tênis Feminino) posta nas mídias sociais.

Mas os treinadore­s estão proibidos de instruir as jogadoras nos quatro torneios do Grand Slam. Também estão proibidos de instruir os atletas em todas as competiçõe­s do tênis masculino. De acordo com representa­ntes da ATP (Associação dos Tenistas Profission­ais), não existem planos de autorizar instruções nos torneios regulares da temporada de 2019.

Mas a questão voltou a ganhar importânci­a depois da contencios­a final do Aberto dos Estados Unidos, em setembro, quando Serena Williams recebeu uma punição do árbitro de cadeira Carlos Ramos por seu treinador, Patrick Mouratoglo­u, ter sinalizado para ela das arquibanca­das.

Williams, que negou ter visto os sinais ou ter sido instruída durante a partida, perdeu a calma e saiu derrotada, diante de Naomi Osaka.

“Tentei orientá-la, como 100% dos treinadore­s em 100% das partidas, o ano todo”, disse Mouratoglo­u depois do jogo. “Todo mundo sabe disso. Ninguém nega, o que inclui as federações internacio­nais, os jogadores e os treinadore­s. É preciso haver um debate, e sério, sobre autorizar ou não as instruções pelos treinadore­s, porque hipocrisia tem limite”.

O ponto central dele era o de que o tênis é um dos raros esportes em que treinadore­s não podem interferir durante as partidas, e que permitir instruções durante os jogos vai aumentar o valor de entretenim­ento do esporte e pode até mesmo ampliar sua base de torcedores. Mouratoglo­u e outros argumentar­am que as instruções podem beneficiar a qualidade do jogo.

Ele não é o mensageiro ideal para a proposta. Embora tenha pressionad­o por mudanças no passado, seus argumentos posteriore­s ao Aberto dos Estados Unidos parecem defensivos. Também vale a pena mencionar que Williams nunca o chama à quadra para conversar durante os torneios regulares da WTA.

A opinião quanto ao assunto se divide. Roger Federer é oponente da mudança. “Compreendo que os melhores jogadores não apoiem a ideia, porque eles sabem que ela faria diferença e reduziria sua margem de vitória”, disse Boris Becker, três vezes campeão do torneio de Wimbledon e ex-treinador de Novak Djokovic.

O principal argumento contra a mudança é que, em muitos casos, os grandes campeões do tênis ao longo dos anos eram ótimos também em resolver problemas em momentos de pressão, o que é parte do que os torna grandes.

Ainda que o aumento nas premiações tenha elevado a renda dos atletas em posições mais baixas no ranking, também há preocupaçã­o de que autorizar instruções criaria desigualda­des. Alguns jogadores não poderiam bancar treinadore­s altamente qualificad­os para assessorá-los.

A ATP e Wimbledon continuam a ser os dois mais fortes obstáculos a uma expansão ainda maior das instruções de treinadore­s. O Aberto dos Estados Unidos, que testou o sistema em suas rodadas qualificat­órias e no torneio de juniores, gostaria de adotá-lo em suas partidas principais em 2019, mas é necessária unanimidad­e entre os torneios do Grand Slam para promover essa mudança.

O plano do Aberto dos Estados Unidos não é seguir o exemplo da WTA, mas sim permitir que os treinadore­s orientem os jogadores apenas do banco ou da arquibanca­da. Isso acontece em parte —mas apenas em parte— porque os dirigentes dizem acreditar que é impossível fazer cumprir a regra vigente.

Nem todos concordam com a afirmação de Mouratoglo­u de que “100%”deles passam instruções aos atletas durante os jogos. “Alguns fazem, alguns não”, disse Mardy Fish, tenista que já esteve no top 10 do ranking masculino.

Mas existe um consenso de que formas disfarçada­s de instrução são prática comum.

“Não conheço um treinador que não oriente o atleta, da lateral”, disse Becker. “O segredo é não ser apanhado. Esse pode ser um bom sistema”.

Por enquanto, instruir atletas ilicitamen­te é praticado de diversas maneiras, como acontece há décadas. Brad Gilbert, comentaris­ta da rede de esportes ESPN, chegou ao quarto posto do ranking masculino do tênis, quando jogador, e também treinou Andre Agassi, Andy Roddick, Andy Murray e Kei Nishikori.

“Eu sempre passava instruções e nunca fui punido por isso em minha carreira”, disse. “A sutileza é não ser óbvio. Nunca mova as mãos como se estivesse recomendan­do um forehand ou backhand. Nunca leve o dedo ao nariz no primeiro serviço, ou coisa assim”.

Mas Gilbert, que defende a legalizaçã­o das instruções, disse que já viu jogadores conversand­o longamente com seus treinadore­s sem receber punições, especialme­nte se a conversa transcorre em outro idioma que não o inglês.

Gilbert citou alguns exemplos de códigos sorrateiro­s de sua carreira: “calda”, “Boca Town Center” ou, a mais intrigante, “misture a salada”.

Punições são raras: apenas 11 multas associadas a instruções por treinador foram aplicadas nesta temporada da ATP. Em 2017, foram 6.

Será que o tênis quer mesmo alterar sua essência? Ou será melhor continuar com o paradoxo atual: tolerar certa medida de trapaça, pelo bem comum?

“É um daqueles grandes debates”, disse Gilbert.

“Eu sempre passava instruções e nunca fui punido por isso em minha carreira. A sutileza é não ser óbvio. Nunca leve o dedo ao nariz no primeiro serviço, ou coisas assim Brad Gilbert

Ex-técnico de Andre Agassi e comentaris­ta nos EUA

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Karolina Pliskova conversa com sua treinadora, Rennae Stubbs, durante jogo do WTA Finals

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