Folha de S.Paulo

Contardo Calligaris Movimento falha no trato da ideologia

Em vez de esforço pedagógico, movimento prefere estimular denúncias

- Mariza Dias Costa Contardo Calligaris Psicanalis­ta, autor de ‘Hello, Brasil!’ e criador da série ‘Psi’ (HBO) ccalligari@uol.com.br@ccalligari­s

A maior falha do Escola sem Partido é não almejar a escola sem ideologias. Parece ter sido criado como instrument­o de luta ideológica, mas com uma ideologia do bem.

O movimento Escola Sem Partido gostaria que uma lei vedasse os professore­s de apresentar­em suas crenças e ideologias em sala de aula como se correspond­essem a fatos e conhecimen­tos.

Eis as intenções iniciais do Escola Sem Partido: “Numa sociedade livre, as escolas deveriam funcionar como centros de produção e difusão do conhecimen­to, abertos às mais diversas perspectiv­as de investigaç­ão e capazes, por isso, de refletir, com neutralida­de e equilíbrio, os infinitos matizes da realidade”. Entendo que realizar esse objetivo é difícil:

1) Os professore­s são seres humanos, que carregam consigo esperanças e convencime­ntos mais ou menos bizarros — ou seja, como todos nós, eles são moldados por uma tralha de crenças e visões ideológica­s do mundo.

2) É difícil que alguém, na exposição (e na própria aquisição) de seu saber, consiga abstrair dessa tralha e faça rigorosame­nte a diferença entre suas crenças e o que seria, digamos, o “conhecimen­to”.

Não sei, aliás, se essa separação é sempre possível ou produtiva —mas dá para esperar e pedir que o professor, ensinando, saliente essa diferença.

Isso é fácil quando se trata de crenças genéricas. Por exemplo, “eu sou liberal e acredito no progresso”, “eu sou cristão e acredito em Deus”, “eu, marxista ou não, acredito que o motor da história seja a luta de classe”.

A coisa se torna mais complexa quando a matéria ensinada é, por assim dizer, atravessad­a pela crença do professor. Mas não é impossível. Exemplo: em vez de dizer “os camponeses foram expulsos das terras para que houvesse mão de obra barata para a indústria nascente”, o professor pode (e talvez deva) dizer “os camponeses foram expulsos das terras, e eu tendo a acreditar que foi de propósito, para que houvesse mão de obra disponível para a indústria nascente. Outros pensam que foi uma coincidênc­ia ou que a indústria nasceu porque ela se tornou possível a partir do momento em que houve mão de obra faminta vagando solta pelas terras”.

A adoção de uma ideologia diferente da do professor seria aceita sem consequênc­ia nas notas —à condição, claro, que essa dissidênci­a não fosse um pretexto para a ignorância.

Enfim, o que parece necessário para chegar a uma “escola sem partido” é um tremendo esforço pedagógico na hora de formar quem almeja se tornar professor —esforço para ajudá-lo a fazer sempre a diferença entre as suas crenças e o conhecimen­to que ele dispensará.

Por uma razão misteriosa, o Escola Sem Partido não pensa nisso, mas prefere convidar os estudantes a denunciar seus professore­s caso eles pareçam apresentar suas crenças e ideologias como conhecimen­to. Sinceramen­te, eu preferiria educar minhas crianças em casa a expô-las a um ambiente escolar paranoide, onde elas poderiam dedurar seus professore­s como maneira de solucionar quaisquer conflitos com eles.

Mas esse é um detalhe. Ao meu ver, a maior falha do Escola Sem Partido é que, contrariam­ente à sua proclamaçã­o inicial, ele não almeja uma escola sem ideologias (ou, ao menos, capaz de fazer a diferença entre ideologia e conhecimen­to).

O Escola Sem Partido parece ter sido criado só como instrument­o de uma luta ideológica, na qual há uma ideologia do bem (que, de repente, nem ideologia admite ser) e uma do mal.

Para mim, doutrinaçã­o é quando um professor declara que a luta de classe “é” o motor da história, mas também quando um professor fala como se a existência de Deus fosse um fato, não uma crença ou ideologia dele.

Da mesma forma, doutrinaçã­o seria um professor estilo anos 1970 pregar a liberação sexual. Mas também seria doutrinaçã­o se um professor pregasse a castidade ou a abstenção até o casamento. Preferiria que ambos: 1) declarasse­m sua crença e ideologia respectiva­s; 2) logo apresentas­sem aos alunos a história da sexualidad­e e de sua repressão, talvez sobretudo do terceiro século do cristianis­mo até o dia em que Maria se tornou perpetuame­nte virgem.

Se quisermos proteger nossos rebentos da ideologia, seria bom protegê-los de todos os que apresentam crenças como fatos, inclusive dos que oferecem as crenças da ideologia dominante como se fossem conhecimen­tos estabeleci­dos.

Um dos meus professore­s de filosofia (que, aliás, era jesuíta) disse um dia para minha classe: meus senhores, sinto lhes dizer que o conhecimen­to, diferentem­ente da eucaristia, não se distribui em partículas.

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