Folha de S.Paulo

Há algo a aprender do pleito americano

Uma das lições: a retórica agressiva nem sempre vence

- Clóvis Rossi Repórter especial, membro do Conselho Editorial da Folha e vencedor do prêmio Maria Moors Cabot

Parte da mídia internacio­nal costuma tratar Jair Bolsonaro como uma espécie de Donald Trump tropical. De minha parte, vejo mais diferenças do que semelhança­s, a começar pela formação de cada um deles: Trump é bacharel em Economia pela Universida­de da Pensilvâni­a, enquanto Bolsonaro admite não entender uma vírgula do assunto. Não tem formação universitá­ria nem chegou a completar os cursos típicos da carreira militar.

Outra diferença essencial: Trump é um bem sucedido homem de negócios, ao passo que Bolsonaro não administro­u nem sequer uma barraquinh­a de açaí.

É óbvio, portanto, que o kit mental e cultural de cada um é necessaria­mente diferente.

Feita a ressalva, o fato de que Bolsonaro confesse incontida admiração por Trump permite tentar ver se há lições que se apliquem ao Brasil do resultado das eleições legislativ­as desta terça (6) nos EUA.

Sempre cabe a observação obrigatóri­a de que são dois países com poucos laços de parentesco entre si. Mas ambos viveram processos eleitorais em uma situação talvez inédita de ira e de divisões profundas na sociedade.

A derrota de Trump no pleito para a Câmara e sua vitória na outra Casa do Congresso indicam que a divisão se manteve. Mas o fato de os democratas terem conseguido recuperar a maioria na Câmara mostra que ”o desdém de Trump por aqueles que não votaram nele transformo­u-se em estratégia desastrosa”, escreveu Jonathan Bernstein, da Bloomberg.

Vale tanto para Bolsonaro e sua ira contra os ”vermelhos”, como se ainda existissem como para os seus opositores que tratam os votantes do agora presidente eleito como criminosos em potencial.

Ambas as atitudes bloqueiam a construção de um diálogo indispensá­vel para o Brasil começar a curar as feridas abertas pela polarizaçã­o dos anos mais recentes.

Parece claro, no caso da eleição americana, que a retórica agressiva e, não raro, ofensiva aos adversário­s reais ou supostos não funciona plenamente, nem mesmo em uma situação econômica confortáve­l.

Se a economia não foi capaz de evitar a derrota do presidente na votação para a Câmara, é razoável supor que esse voto contrário é uma manifestaç­ão de repúdio ao ”nós contra eles” que Trump estimulou. E que, aqui, vem desde os tempos dos governos do PT e foi ainda mais acirrado na campanha de Jair Bolsonaro.

Uma terceira aparente lição: as minorias que Trump despreza —e pelas quais Bolsonaro tampouco tem a menor simpatia— não voltarão a seus armários. Ao contrário, vão à luta eleitoral e ainda por cima ganham. Casos, para citar apenas alguns exemplos, de Sharice Davids, lésbica e de origem indígena, eleita no Kansas, e de Rashida Tlaib (Michigan) e Ilhan Omar (Minnesota), as primeiras mulheres muçulmanas eleitas para o Congresso.

A vida, o mundo, o Brasil e os EUA são demasiado complexos para caber em esquemas simplórios, toscos, como os desenhados nos tuítes de Trump e nos comentário­s de Jair Bolsonaro nas redes sociais.

Não venha agora o presidente americano chamar de fake news a notícia de sua derrota parcial. Melhor seguir o general argentino Juan Domingo Perón, três vezes presidente, para quem ”la realidad es la única verdad”.

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