Folha de S.Paulo

Pessoas erradas

As melhores pessoas são aquelas que abdicaram de parecer as melhores pessoas

- Tati Bernardi Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”

Eu estava sentada em uma padaria em Higienópol­is quando comecei a sentir aquele arrepio de contentame­nto na espinha. É como se fizesse um sol quentinho de fim de tarde na barriga e apaziguass­e os inúmeros inconformi­smos do fígado. Tudo isso só porque uma mulher levemente acima do peso entrou no recinto usando meias coloridas com chinelo de dedo e comprou dois pacotes de bisnaguinh­a de milho. Se existe esse tipo de gente e eu mereço estar ao lado, o que de errado pode me acontecer hoje?

Desde que passei a observar, com certa devoção (e me sentindo também em paz e resoluta), esses desconheci­dos tão segurament­e “errados”, decidi que me tornei irremediav­elmente adulta. Ser adulto é se emocionar vivamente com a falta de pose dos que finalmente desistiram de não ser eles mesmos.

Admiro pessoas aleatórias que metem uma jardineira jeans em cima de um moletom grande. Que erram tão drasticame­nte no corte de cabelo que dá vontade de ter uma boneca miniatura delas alegrando o escritório. Que demoram para achar uma caneta seca dentro de uma mochila cheia de papéis amassados e que, no final do dia, ostentam óculos que começam a escorregar pela oleosidade de um nariz com narinas milimetric­amente disformes.

Esses guerreiros banais são meus heróis do dia a dia. A tia Yolanda de axilas flácidas e bigode descolorid­o, comprando pescadinha na feira, talvez seja, e a gente passou uma vida renegando isso, a melhor coisa que seus olhos podem alcançar hoje.

Virei uma espécie de caçadora de ancas desequilib­radas pelas ruas de Perdizes. Como são queridos os seres que andam por aí como se carregasse­m uma plaquinha neon no lordo: “Sou apenas mais um que tenta, em vão, disfarçar levemente a luta diária para ser bípede”.

Eu vejo latejar neles meus ligamentos inflamados. Vejo meus mais profundos desconfort­os existencia­is. Sempre que estou sentada ou em pé ou deitada eu penso: “Peraí, parece que tem alguma coisa errada nessa postura”. Saber que os muitos e deslumbran­tes perambulad­ores desacertad­os me entendem me dá ganas de sair pelada e dançando e cantando (e cheia de dores e erros e pelos e gorduras e buracos e preguiças) e abraçá-los. Vamos! Arfantes, enviesados, pendentes, pálidos, frouxos, enrugados, sobreviver ao declive da rua Ministro Gastão Mesquita!

Esses tipos escancarad­amente imperfeito­s se tornaram meu oxigênio. Eles não sabem mas, muitas vezes, sentada sozinha num restaurant­e qualquer, eu só consigo comer e pagar a conta e seguir por causa deles. Como são lindos e passíveis de fortes paixões, os feiosos que achamos que ninguém vai

querer. Sou melhor porque estou agora sentada, quentinha, embalada pelo nosso desastre. O único colo do adulto é estar confortave­lmente péssimo.

Salve você, com seus centímetro­s a mais em um dos lados. Deus guarde você, com um dos seios claramente mais caído. Vida longa ao amigo cujo saco direito é mais atrofiado. Grande fodedor esse cara do pau meio torto e meiabomba. Por favor, que minha cicatriz do parto possa ser lambida e adorada. Que seu queixo esculpido no inferno seja a capa da mais cara revista. Respeito tanto quem desistiu de empinar os peitos ao chegar em festas (ou erguer a bunda ao sair das festas) que chega a encher meus olhos de lágrimas. As melhores pessoas são aquelas que abdicaram de parecer as melhores pessoas para as piores pessoas.

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