Folha de S.Paulo

Índia militar da equipe de Bolsonaro morou na rua e foi atriz da Globo e atleta

A figura de Trump da periferia do capitalism­o é um mimetismo constrange­dor

- Reinaldo Azevedo Jornalista, autor de “O País dos Petralhas”

“A Educação pela Pedra”. Penso em presentear Jair Bolsonaro com o livro de poemas de João Cabral de Melo Neto. Para que começasse a captar também a voz “inenfática” e “impessoal” dessa poesia muito particular que é a política. Sua “carnadura concreta” está ausente das redes sociais.

Eventos desta semana que termina o convidam à leitura. Em tempo: isso não quer dizer que João Cabral seja condição essencial para um bom governo. Mas será sempre melhor com ele.

Não é corriqueir­o que um já indicado superminis­tro da Justiça, como Sergio Moro fez na terça, conceda uma entrevista coletiva ainda na condição de membro do Judiciário e se apresente como o certificad­o de garantia de que o poder ascendente ao qual servirá vai se manter no trilho do Estado de Direito. Ao soletrá-lo, constatei a inversão de hierarquia. Parecia ser ele a justificar o poder do eleito, não o contrário.

Na quarta, o próprio Bolsonaro, chefe do ministro indicado, reuniu-se com o ministro do Supremo Dias Toffoli e resgatou algumas plateias, incluindo setores da imprensa, de uma espécie de “torpor gozoso” a que Moro as havia conduzido.

De modo sutil, mas evidente, num encontro institucio­nalmente correto, o presidente de um Poder e o futuro presidente de Outro lembraram ao juiz e a seus adoradores que o eleito se chama Jair Bolsonaro. As instituiçõ­es democrátic­as não precisam de demiurgos que as interprete­m segundo sua suposta capacidade de encarnar o espírito de um tempo.

Às vezes, pois, Bolsonaro dá sinais de que começa a ter noção do tamanho do problema que os eleitores, muitos deles fanáticos, resolveram jogar no seu colo. No mundo real, palavras têm consequênc­ias.

Declaraçõe­s desastrada­s oriundas da nova ordem sobre China, Mercosul e embaixada brasileira em Jerusalém chamaram ao debate países que respondera­m por mais de 50% do superávit da balança comercial brasileira no ano passado.

A figura de um Donald Trump da periferia do capitalism­o é mais do que um mimetismo constrange­dor: trata-se de uma impossibil­idade técnica. Aquele pode se comportar como um autocrata arruaceiro sem maiores prejuízos —e só por enquanto.

Não é o caso de um presidente brasileiro. E as mesmas restrições recaem sobre os auxiliares do futuro ocupante do Palácio do Planalto.

Na terça, por exemplo, a “inexperiên­cia bem-intenciona­da” de Paulo Guedes, futuro ministro da Economia, levou-o a sugerir que se desse uma “prensa” no Congresso —não deixou claro quem o faria— para aprovar ainda neste ano a reforma da Previdênci­a.

Segundo noticiou O Globo, já na manhã daquele dia, o economista havia tratado com desdém loquaz e agressivid­ade descabida uma tentativa de aproximaçã­o de Eunício Oliveira (MDB-CE), presidente do Senado, que o indagara sobre quais seriam as preocupaçõ­es de Bolsonaro com o Orçamento de 2019, ainda em votação no Congresso.

Guedes respondeu que não estava muito preocupado com o Orçamento porque este poderia ser mudado depois. Segundo disse, a única prioridade é a reforma da Previdênci­a.

E emendou: se não for aprovada, a responsabi­lidade por uma eventual volta do PT ao poder “será de vocês”. O gabinete de Eunício estava lotado de autoridade­s da República que aguardavam o início da solenidade em comemoraçã­o aos 30 anos da Constituiç­ão. Constrangi­mento geral. No dia seguinte, o Senado aprovou o reajuste dos ministros do Supremo.

Retaliação? Era o “adensarse compacto” do mundo real. Bolsonaro teve a chance de tratar, durante a campanha, da reforma da Previdênci­a e do salário dos ministros do tribunal —na verdade, o tema remete ao teto do funcionali­smo e à ampla legislação que indexa salários de outras categorias ao vencimento dos membros do STF—, mas não o fez.

Um ET meio abestado a pilotar Oumuamua, aquele “charuto espacial”, e que tivesse passado por aqui no período teria relatado a seus superiores que os problemas verdadeira­mente graves daquele tal Brasil, na Terra, eram ideologia de gênero, esquerdism­o de professore­s mal pagos e falta de pistolas manejadas por pessoas de bem.

No livro de João Cabral, há o poema “Fábula de um arquiteto”, o que constrói “portas poronde, jamais portas-contra;/ por onde, livres: ar luz razão certa.” Vai aqui a minha colaboraçã­o com o futuro governo: “A Educação pela Pedra”.

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