Folha de S.Paulo

Análise Carlos Melo

- Carlos Melo Cientista político e professor do Insper

Sistema do país é forjado na conciliaçã­o de interesses

A vida é mais difícil que um sonho; a de um presidente da República pode ser pior que um pesadelo.

Empolgado com o resultado das urnas, Jair Bolsonaro levitava de contente.

À parte do grave atentado que sofreu, o ex-capitão ganhara uma eleição dificílima com maior facilidade do que poderia ter sonhado.

Mais: a agenda que propagande­ou durante a campanha parecia não sofrer oposição, a não ser do PT, derrotado nas urnas.

No segundo turno, vários partidos correram em seu apoio. Sinal de que estariam dispostos a caminhar juntos, no futuro governo.

Na campanha, o presidente eleito fez crer que, no limite, tudo dependeria de sua disposição pessoal.

Contudo, não avisou do pesadelo que é a negociação a que os governos estão submetidos no formato de governabil­idade que se dá no presidenci­alismo no Brasil.

Resultado da interação de um número ilimitado de per- sonagens, a política demanda construção de consensos, convencime­ntos e, sim, negociação de interesses.

O sistema político brasileiro foi desde sempre forjado na conciliaçã­o desses interesses.

Bolsonaro, porém, havia anunciado na campanha que acabaria com o “é dando que se recebe”. Vê-se agora que nada é tão simples. E bem precocemen­te criou-se o primeiro impasse da era Bolsonaro.

A vontade de cada membro do Congresso Nacional também conta, e muito. Parlamenta­res podem até recebê-lo com festa, mesuras e lisonjas. Mas dar-lhe o que deseja é outra coisa.

Pode-se argumentar que o Congresso que ora vige está tomado por mais de metade de seus membros que não conseguira­m se reeleger, não gozando da mesma legitimida­de do presidente eleito.

Seria, por exemplo, o caso de Eunício de Oliveira, o presidente do Senado que na quarta-feira (7) aprovou um desproposi­tado aumento de salários que compromete­rá ainda mais a saúde fiscal do país.

Com efeito. Contudo, todos foram eleitos para cumprir mandatos que estão em vigor e lhes dá, sim, o direito de exercer seus votos da forma que entendem mais correta.

Depois, nada garante que a próxima legislatur­a seja, nesse particular, distinta da atual. Trata-se de uma caracterís­tica estrutural do sistema.

Negociaçõe­s são inevitávei­s e, na maioria, se dão nos bastidores; há a ação de lobbies, um emaranhado processo de trocas de apoios.

Política é, sim, um jogo de construção de consensos, de avanços e recuos.

Cabe ao governo jogá-lo ou propor novas regras, que, no limite, serão aprovadas pelo próprio Congresso.

Assumir um governo é passar a ser vidraça. E mourejar a cada votação.

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